O Hificlube não pretende converter-se numa revista áudio cor-de-rosa, ou um tablóide de escândalos audiófilos online, tendo como cenário um albergue espanhol de electrónica de consumo, onde cabe de tudo, desde televisores a computadores, só para aumentar as “audiências”.
Ao aceitar passar as últimas semanas com o Asus Essence III USB DAC, o único objectivo sempre foi a qualidade das audições. Portanto, não há aqui qualquer intenção de explorar o facto de a Asus ser uma “socialite” informática, só porque o mercado highend está em crise, e é preciso “alargar” as áreas de influência do Hificlube.
Se o Essence III não o justificasse, eu não me teria dado ao trabalho (e ao prazer) de o analisar, nem que o pedido de parecer tivesse vindo do presidente da República.
Aliás, a minha relação com a Asus não é recente: o meu fiel portátil e a placa do meu PC doméstico são desta marca. Só ainda não tinha até agora abordado a Asus pelo prisma do áudio highend.
Uma questão de nobreza?
Pronto, admito que, pelos padrões nobiliárquicos da audiofilia reinante, o Essence III não é de origem aristocrática, nem descendente de famílias com o brasão do highend. Famílias essas que, diga-se em abono da verdade, têm, sobretudo na área da reprodução digital, mais filhos bastardos do que se pensa.
Muitos DACs são gerados em “barrigas de aluguer” OEM de empresas multinacionais informáticas, e depois são apresentados pelos departamentos de marketing como tendo sangue audiófilo azul, pois a maior parte dos pequenos fabricantes não dispõem sequer de meios tecnológicos próprios, nem têm a capacidade de produção em grande escala exigida pelo actual mercado.
Numa era em que a reprodução de música é cada vez mais um assunto informático, como demonstra o recente “boom” de oferta online de ficheiros de áudio de alta resolução para download, depois do sucesso dos formatos menores oferecidos pela iTunes e pela Spotify, mais interessadas na quantidade, logo na compressão, que na qualidade, os computadores têm vindo a substituir com vantagem os meios convencionais de reprodução digital de música.
E que melhor empresa para se lançar directamente neste mercado que a Asus?
O sucesso da aposta tardia da Sony no DSD é uma incógnita?
A esta decisão também não é alheia a recente aposta em desespero de causa da Sony, Warner e Universal, que levou a CES este ano a juntar num fórum, sob o tema High Rez Audio, fabricantes, editoras e retalhistas online de AudioHD em DSD (Direct Stream Digital) e PCM com resoluções até 24-bit/192kHz, ou mesmo 384kHz, aproximando o consumidor do produtor de música “biologicamente pura”, isto é, tão próxima quanto possível da matriz original, e sem as limitações do suporte físico em disco óptico: CD, SACD, DVD-Audio e até Blu-ray (o novo Pure Audio da Universal, por exemplo, nasceu este ano e já é obsoleto).
Highend informático é o futuro?
Não é de admirar, pois, que multinacionais da informática vejam aqui uma hipótese de negócio, e se juntem agora em nome próprio às marcas de equipamento áudio, que já apresentam nos seus portfolios DACs, com maior ou menor capacidade de reprodução de AudioHD, a preços que vão dos 100 aos 100 mil euros!
O Hificlube há muito que está atento a este fenómeno, e tem vindo a publicar análises de várias propostas de diferentes fabricantes áudio, disponíveis para leitura na secção Reviews/Testes (e também nas Notícias e Eventos), mas nunca se tinha debruçado com sentido crítico sobre um produto áudio de origem informática pura.
Para isso muito contribuiu o facto de a Asus, respaldada no merecido sucesso das suas placas de som Xonar, ter criado a Essence, um departamento autónomo dedicado ao áudio e ao desenvolvimento de DACs de elevado desempenho, que são distribuidos por uma das mais antigas e fidedignas empresas do ramo audiófilo em Portugal: a Delaudio, de Delfin Yanez.
O Essence III é o mais sofisticado dos DACs externos da Asus, cuja linha é composta pelos modelos: STU e One, também nas versões Muses Edition e Plus Edition (ver tabela de preços em pdf no quadro de info adicional no topo da página à direita).
O que distingue o Essence III, além de outros preciosismos de concepção e construção, que podem conhecer em pormenor abrindo o pdf de apresentação, e justifica em parte o preço de 1690 euros, é a sua compatibilidade com os formatos DSD64 e DSD128 nativo. Uma compatibilidade muito rara actualmente, mesmo em modelos de marcas famosas que custam dezenas de milhares de euros.
Assim, optámos por fazer incidir a nossa análise sobre esta característica especial, se bem que o interesse para o público em geral seja pouco mais que residual, dada a limitada oferta no mercado mundial de música editada nestes formatos.
Eu próprio terei por alto 100 ficheiros DSD64 (.dff e .dsf) e não mais de uma dúzia em DSD128. Basta pensar que só a Spotify oferece (literalmente) 5 milhões de faixas em baixa resolução, que reproduzidas através de um bom DAC, como é o caso do Essence III, satisfazem a maior parte dos consumidores de música online. Idem para o You Tube. Ibidem para o iTunes.
Mas antes, permitam-me esclarecer algumas curiosidades relacionadas com DSD e as suas alegadas vantagens (ou desvantagens) sobre PCM, sem entrar demasiado nas sempre longas e aborrecidas complexidades técnicas.
DSD: mito ou realidade?
A primeira vez que ouvi DSD nativo foi em S.Francisco, em 1997. Aquela audição marcou-me e, desde então, tenho sonhado poder reproduzi-la em ambiente doméstico. A Sony criou o DSD para preservar em formato digital o gigantesco acervo analógico da Columbia. O SACD só apareceu muito depois, e não tinha a mesma qualidade.
Mas para reproduzir matrizes em DSD a Sony precisou na altura de um furgão para levar todo o material necessário. Hoje eu tenho dezenas de matrizes DSD numa simples pen de 32Gb, e posso ouvi-las em casa com o PC Asus, com o J.River Media Player e a drive ASIO da Asus instaladas, e, claro, o Essence+auscultadores.
Cada cor seu paladar
Assim como há muitos formatos PCM, há dois formatos DSD: 64 (1bit- 2,8224MHz =64 x 44,1kHz) e 128 (5,6448Mz=128 x 44,1kHz). Este último é mais utilizado para arquivo e coloca problemas adicionais de reprodução, pois estende a resposta em frequência para o dobro da banda áudio (40kHz).
Temos ainda três tipos de ficheiros .dff (Philips) .dsf (Sony) e .wsd (Audio Consortium), este raro e até desconhecido por muitos, porque só é utilizado por editoras japonesas também para arquivo. Todos os ficheiros de que disponho são do tipo .dff e .dsf, sendo a grande maioria em DSD64. Disponho ainda de uma enorme quantidade de ficheiros .dsf resultantes da conversão de CDs.
Com uma frequência de amostragem de 2,8224Mhz a largura de banda teórica, segundo o teorema de Nyquist, é de 1,4112Mhz! Mas a dinâmica da conversão Delta Sigma de bit único é limitada. Assim, para se obter, dentro da banda áudio 0-20kHz, a dinâmica máxima teórica do DSD, que é de 150dB, é preciso utilizar uma técnica de “formatação de ruído” (noise shaping), que produz ruído ultrasónico e tem de ser filtrado, não porque seja audível, mas porque pode interferir com a performance dos prévios e amplificadores modernos com enorme largura de banda.
A grande vantagem do DSD sobre o PCM reside sobretudo no facto de a filtragem não produzir “danos colaterais”, como modulação audível antes e depois do sinal: “eco” ou vibração (pre post ringing/echo).
Eis como Paul Mc Gowan, da PS Audio, um adepto incondicional, descreve o DSD:
There are no samples, there are no words, there is no code. Instead there is a continuous streaming “train” of single identical bits that are either on or off. Here’s the interesting part of this: if you take a DSD stream and run it through a simple analog lowpass filter to smooth out the on/off transitions, you get music! This is amazing considering that if you do the same with PCM you get only noise. DSD is a lot closer to analog than PCM ever thought to be.
Posto isto, a maior parte dos ficheiros DSD disponíveis online não passam de cópias de originais em PCM, e apenas soam alegadamente melhor porque o processo de reprodução é diferente. As etiquetas que gravam e editam em DSD nativo são poucas e a música que oferecem é geralmente desinteressante e minimalista. Ou então, pedem entre 25 e 50 dólares por uma cópia em DSD de discos que já todos temos em LP, CD, SACD, ou ficheiro PCM, quantas vezes obtido a partir de matrizes duvidosas registadas originalmente a 48kHz 20-bit.
Acresce que a maior parte dos DACs reproduzem DSD via DoP (dsd over pcm). Pior: sob formato digital DSD não é tecnicamente possível editar nem regular o volume de som sem converter o sinal primeiro para PCM!
O Asus Essence III reproduz DSD nativo, isto é, nas frequências nativas de amostragem de 2,8224 MHz e 5,6448 Mhz. Contudo, como já vimos, o DSD nativo foi criado como formato de arquivo e não é lá muito “user friendly”. Precisa de um media player compatível como o J.River e, mesmo assim, podem ouvir-se estalos no início e mudança de faixas e o controlo de volume é problemático.
Mas no dia em que ouvir DSD nativo - na origem e na reprodução - vai perceber que tudo vale a pena quando a alma da música não é pequena. O Essence III abre-nos essa janela de oportunidade a um preço acessível.
Asus Essence III USB DAC
Finalmente, vamos ao que interessa.
O Essence III cumpre o que promete? De uma maneira geral, sim. E, num aspecto em particular – a reprodução de DSD nativo -, sem dúvida nenhuma. Yes, it can!
Comecemos pelo princípo de todas as coisas: o preço. Por 1 690 euros, não há no mercado nenhum DAC que ofereça simultaneamente:
DSD nativo (perfect bit)
Amplificador de auscultadores balanceado com dupla entrada mini-XLR e jack
Jitter ultra-baixo e USB 2.0 assíncrono
PSU independente por canal
Placas e alimentação separadas analógico/digital
DAC balanceado dual-mono AD 1955
Amplificadores operacionais (op-amps) AD827SQ e MUSE 02
PSU linear com transformador toroidal multi-rail
Controlo de volume de resistências controladas por relés, independente para auscultadores e saídas de linha (esta c/ controlo remoto)
Entradas digitais: coaxial e óptica, AES-EBU e USB
Saidas analógicas RCA e XLR (balanceadas) c/bypass do controlo de volume
O Essence III é ainda compatível com todos os formatos de ficheiros com resoluções entre 44.1kHz-192kHz 24-bit. Não é compatível (?) com DXD a 352,8kHz e 384kHz, o que é estranho, pois os modelos da Série One tinham capacidade de upsampling para 352,8/384kHz 32-bit.
A caixa cinzenta, de arestas boleadas, tem um design sóbrio, discreto e frugal na qualidade dos materiais. Os botões rotativos de volume são do tipo retro, a lembrar os McIntosh. A Asus investiu mais no recheio que no visual. Fez bem, pois o objectivo era a relação performance/preço.
O Essence III navega nas águas limpas e transparentes dos ficheiros PCM até 192kHz com facilidade, classe e velocidade, e torna surpreendentemente agradáveis de ouvir até os ficheiros de baixa resolução da Spotify e do You Tube. Também utilizei a entrada coaxial, explorando a capacidade do leitor universal Oppo de fornecer por esta via sinais digitais registados em discos ópticos a 96 (Chesky), 176,4 (Reference Recordings HR-X) e 192 kHz (2L), que este Essence reproduziu com toda a “essência” musical.
O Essence III pode assim ser integrado como prévio/DAC ou apenas DAC com saída fixa num sistema highend (a qualidade do som justifica plenamente esta opção), ou utilizado como DAC/amplificador de auscultadores.
Foi nesta última função, que ganhou os galões de oficial da Armada Highend. Com o DAC é fornecido um CD para instalar uma drive ASIO Asus, que o J.River reconhece imediatamente. Nota: sem o protocolo ASIO não é possível reproduzir DSD nativo. Wasapi e Kernel streaming só com DoP.
Pela primeira vez, tive assim oportunidade de ouvir alguns dos meus ficheiros DSD64 e 128 sem recurso ao protocolo DoP (Digital over PCM), algo até agora exclusivo de brinquedos caros como o dCS Vivaldi, que custa algumas de dezenas de milhares de euros.
E, para que não restassem dúvidas no meu espírito, enquanto com o protocolo DoP, os outros DACs exibem respectivamente 176,4kHz/352,8kHz, com o Essence III o menu do J.River exibe o anúncio:
DSD 2,8/5,6Mhz 1 bit 2 ch from source format dsf/dff no changes made
O Essence III funcionou melhor com DSD64 que DSD128. A qualidade do som é obviamente superior com DSD128 (mais orgânico e de textura mais densa, sem perda de transparência, com mais dinâmica e ataque), mas ouve-se um ligeiro fru-fru nas altas frequências, que não chega a ser incomodativo, e se esquece ao fim de um tempo. Mas está lá, e não devia estar. Porquê? Não sei.
Embora não me custe admitir que o DSD128, ao estender a resposta até aos 40kHz, tenha colocado os modestos (mas ainda assim excelentes) Focal Spirit One in Dire Straits (em maus lençóis). Infelizmente, os fabulosos Audeze LCD3, que dispõem de cabos balanceados, estão esgotados, pelo que não pude testar o Essence III nesta configuração, uma experiência, por certo, transcendente.
Registo, portanto, a ressalva de que o problema pode não ser do Essence III, mas sim dos auscultadores, embora eu tenha utilizado também uns Martin Logan Mikro com o mesmo resultado.
Aliás, a compatibilidade com DSD128 é mais um extra simpático que uma necessidade real. Poder-se ouvir DSD64 nativo com esta qualidade a este preço já é, por si só, um luxo audiófilo!
Só tenho um “defeito” a apontar ao Essence III: o controlo de volume analógico (?) tem apenas 24 passos. Ora, com ficheiros DSD, cujo nível de sinal é mais elevado, dependendo embora da sensibilidade dos auscultadores, não é possível baixar o som gradualmente, pois no troço final o potenciómetro tem poucos passos e torna-se brusco e corta o sinal antes de atingir o limite do percurso.
Curiosamente, esse problema não é tão significativo com sinais PCM (e menos ainda com MP3 e afins), o que me leva a pensar que o controlo é do tipo híbrido digital/analógico.
Nota: não é possível regular sob formato digital o volume do som de sinais DSD sem os converter para PCM e a Asus quis evitar isso – estou a especular.
Conclusão: com ficheiros musicais PCM até 192kHz-24 bit, há no mercado nacional DACs de -300 euros (incluindo da Asus, ver tabela de preços em pdf) capazes de obter resultados semelhantes por uma fracção do preço, alguns são até portáteis ou mesmo de bolso (ver Reviews/Testes).
Mas por um preço abaixo de 2 000 euros, não há no mercado muitos DACs com esta versatilidade de funções e ligações; e não há nenhum DAC comprovadamente compatível com DSD 64/128 nativo, como é o caso vertente do Asus Essence III.
Well done Asus. I am really impressed.
Para mais informações: