O que distingue a arte da técnica é a perenidade. O desenvolvimento tecnológico é tão rápido que o que ontem era revolucionário hoje é vulgar. Mas o que antes era arte, é e há-de ser sempre arte, sobretudo quando técnica e arte se confundem numa simbiose perfeita.
O McIntosh MC275 LE 50Th Anniversary concilia os olhos de quem vê e os ouvidos de quem ouve e soa tal e qual como parece: dourado, luminoso e quente; sólido, transparente, simétrico e coerente; orgânico; texturado e equilibrado.
A arte
Associar a McIntosh à Harley-Davidson é já um lugar comum na literatura áudio: têm ambos o mesmo apelo estético e emocional, o mesmo carisma e prestígio. Não sendo hoje os mais rápidos ou tecnologicamente mais avançados, optaram pela tradição em detrimento da competição, sabendo manter vivo o estatuto de objectos de culto.
Há um culto da Harley-Davidson como há um culto da McIntosh. E não vale a pena desviar os fiéis do seu caminho com o argumento de que são “coisas” do passado, porque é na história que o presente se alicerça e o futuro se anuncia.
O som característico das Harley-Davidson resulta do famoso motor de combustão interna de 2 cilindros em V a 45 graus.
O som do “motor” McIntosh resulta do circuito Unity Coupled (ver nota técnica no final), patenteado por Gordon Gow e Frank McIntosh em 1949 (!!), que tem por base o transformador de duplo primário com enrolamento bifilar para garantir um acoplamento magnético constante.
Nota: o MC275 LE (Mk VI) utiliza uma variante de enrolamento trifilar desenvolvida e patenteada posteriormente por Sidney Corderman.
A história
Gordon Gow morreu em 1991 e Frank McIntosh um ano depois. Por ocasião da CES 1994 , visitei a fábrica da McIntosh, em Binghamton, perto de NY. A McIntosh, que faz hoje parte do grupo Fine Sounds (Audio Research, McIntosh, Sonus Faber e Wadia), era então propriedade da japonesa Clarion.
Em 1994, Ron Fone era o presidente da McIntosh/Clarion, e tinha lançado uma versão comemorativa do MC275 (a produção do original cessara em 1973), em homenagem a Gordon Gow e convidou a imprensa para a sua apresentação.
Tive assim ainda a honra de conhecer pessoalmente Sidney Corderman, o pai do MC275, e de ver construir, de forma quase artesanal, os famosos transformadores que distinguem a McIntosh da concorrência, inclusivé a fase final, quando são “embebidos” em alcatrão líquido para eliminar qualquer vibração mecânica. O cheiro era insuportável, mas o operário alegava que já estava habituado e não lhe causava incómodo: McIntosh is proudly made in USA. Era e ainda é!
No final da visita, no decorrer de um animado jantar de convívio, no qual participei com outros jornalistas, entre os quais Ken Kessler (HiFiNews) Paul Messenger (Hifi Choice), Jorge Gonçalves (Audio), Ron Fone decidiu “rifar” um amplificador MC275, escrevendo o nome de cada um dos presentes num papel, que colocou dentro de um boné, e o sorteio calhou em sorte a Eduardo Rodrigues, que estava acompanhado por João Cunha, então distribuidor da marca.
Eduardo Rodrigues dava pulos de contente e fez um discurso emocionado em Português, que eu ia traduzindo como podia. Nunca o tinha visto tão feliz, desde uma audição das Duntech Sovereign, em Paris, com uma reprodução absolutamente telúrica dos graves electrónicos de “Le temp passé”, de Michell Jonasz, que “o deixou a bater mal” para utilizar uma expressão muito sua.
A Armada Anglosaxónica, que bebera bem, ficou a bater mal também, amuou e exigiu a Ron Fone que “rifasse” um segundo MC275 “só entre eles, os jornalistas”, sendo que nós por exclusão de partes éramos os “outros”, aquilo a que hoje se chama “os periféricos”. Agora já sabem quem somos...
Enfim, esta é uma das muitas histórias que vão constar da minha autobiografia audiófila.
Ao longo de 30 anos da carreira de crítico, testei vários modelos da McIntosh e alguns dos artigos estão disponíveis no arquivo do Hificlube (ver Artigos Relacionados), incluindo, claro, o famoso Gordon J. Gow MC275 Commemorative Edition, este publicado na edição de Junho de 1994 da revista Audio: “A Fénix Renascida”. Transcrevo aqui livremente alguns excertos do artigo:
'Que dizer do som do McIntosh MC275?
Que é tipicamente «válvulas-anos-60»: quente e doce com baixo arrastado, sem arestas duras na gama média e agudos redondos como os seixos do rio?
Nada disso. A primeira sensação, logo a frio, é a de presença e transparência... reproduz os metais de forma explosiva e realista; as vozes soam limpas, presentes e naturais e as cordas têm a mistura ideal de açúcar e resina... é surpreendentemente dinâmico...correcto em termos tonais... sem ser velado ou gorduroso... não enfatiza certas zonas do espectro em detrimento de outras... justo equilíbrio entre presença e recato...'.
'Perante o desempenho global do MC275, em que medida se evoluiu nas últimas três décadas no campo da amplificação, não em termos electrónicos, entenda-se, mas naquilo que realmente interessa: a reprodução musical?...'.
Vinte anos depois, to be or not to be that is the question again.
A técnica
O modelo comemorativo foi produzido até 1996 e apresentava melhorias cosméticas e técnicas em relação ao modelo original, muitas das quais ainda hoje se mantêm no actual modelo 50th Anniversary: fichas banhadas a ouro, entradas XLR (balanceadas) fixas e RCA variáveis (opção abandonada na versão VI), resistências de baixa tolerância, condensadores de polipropileno, placa de circuito em fibra de vidro, bornes de saída com adaptação de impedância (4, 8 e 16 ohms em estéreo e 2, 4 e 8 ohms em mono), etc.
Mas a principal alteração, além do andar de ganho para acomodar o circuito balanceado, foi a substituição das válvulas 12BH7 por 12AZ7 e 12AU7 por 12AX7. O andar de potência foi optimizado para as ubíquas KT88 e as também compatíveis e “rosy sounding” 6550. Podem ainda utilizar-se as mais modernas e potentes KT120 mas a McIntosh não aconselha.
McIntosh MC275 Limited Edition 50 th Anniversary
O modelo foi sendo sistematicamente aperfeiçoado em questões de pormenor, mantendo a tecnologia nuclear de base, e a versão Mk VI 50Th Anniversary é o culminar da “obra eterna” de Sidney Corderman.
As principais diferenças “saltam à vista”, literalmente. O chassis de aço reforçado com titânio é agora dourado e a base da primeira fileira de válvulas ilumina-se sequencialmente de âmbar, da esquerda para a direita, fixando-se depois num tom verde-kryptonite, se tudo estiver a funcionar bem.
Se houver algum problema eléctrico, o led “dá-nos” com o vermelho e a válvula sai de campo para entrar outra mais fresca.
Acampado na suave encosta dourada está um batalhão de oito sólidos bornes de metal (sem as mariquices de protecção plástica impostas pela UE), quatro por canal, com o neutro/esquerdo comum e o positivo/direito com impedância variável: 4, 8 e 16 ohms.
Nota: eu preferi os 4 ohms, do mesmo modo que optei pelas entradas não-balanceadas (RCA), pois foi assim que obtive o som mais aberto e natural. Faça as suas próprias experiências.
Logo abaixo, estão montados os comutadores on/off, balanced/unbalanced e mono/stereo; além das respectivas fichas de entrada RCA/XLR e fichas para ligação remota via outros componentes McIntosh (os prévios mais recentes, por exemplo) o que não é o caso do C2200.
Do lado direito, o comutador do temporizador que desliga automaticamente o amplificador após 30 minutos sem utilização. Se gosta de o manter quentinho, sempre pronto a entrar na máxima performance, desactive o temporizador, pois o som torna-se mais transparente, coeso e dinâmico, após uma a duas horas de actuação. E a EDP agradece.
Da evolução técnica já falámos: enrolamento trifilar dos primários para aumentar a largura de banda que é agora de 10Hz-100kHz; duplicação da tensão na fonte de alimentação para maior linearidade de funcionamento das válvulas; anel de realimentação directamente ligado ao enrolamento do transformador de saída, baixando a impedância e permitindo um aumento substancial do factor de amortecimento.
A tecnologia Sentry Monitor de protecção automática em caso de mau funcionamento, utilizada em todos os actuais modelos da McIntosh, foi também instalada no clássico MC275LE.
A potência declarada é de 75W (150W em mono) mas, na prática, é como a declaração de IVA ao fisco: há aqui muita economia paralela e as notas abundam na carteira recheada de música do MC275LE.
A audição
Eu já tinha ouvido o 50th Anniversary (aliás, 2 em modo monofónico), na instalação montada pela Ajasom no Hotel Ritz para a apresentação do gira-discos Kronos Sparta; e, logo ali, fiquei com aquele nó na garganta que é em mim um claro sintoma de desejo de posse.
Claro que não dispunha das belissimas Vivid Giya 4 nem do Sparta (muito menos da sala do Ritz...), mas o McIntosh C2200 é há muitos anos o meu prévio residente, tendo sido a última grande obra de Sidney Corderman (circuito valvulado) em colaboração com Roger Stockholm (circuitos lógicos).
Como fonte, o fiel Chord DAC64 alimentado por transportes Sony e Oppo. Para sobremesa uma tábua de doces em HD do meu disco rígido. Cabos Nordost Valhalla, Black SAT e Black Sixteen.
Por acaso do destino, não tinha colunas à mão capazes de bater o pé ao MC275LE. Mas um velho par de Martin Logan Clarity, que já não funcionavam há meses, e as sempre deliciosas Sonus Faber Concertino excederam todas as expectativas, superando-se como uma actriz menor quando contracena com um grande actor.
As Clarity mereciam até um Oscar, porque, à noite, com o auditório apenas iluminado pelo fogo divino das válvulas, as lágrimas rolavam soltas pelo meu rosto incrédulo, ao ouvir discos que já ouvira mil vezes e outros que não ouvia há mil dias.
Tendo em conta as limitações referidas, não posso afirmar em consciência que este 50th Anniversary é o melhor amplificador do mundo, sequer o melhor amplificador a válvulas. As opções são muitas até na própria Ajasom, que distribui também a Conrad-Johnson, Unison Research e a Nagra.
Mas...
O MC275LE reconciliou-me com a crítica áudio, quando o ânimo já me vai faltando, numa época em que as pessoas passam o pouco tempo livre nas redes sociais e estão-se nas tintas para o áudio (mais ainda para as válvulas!), tendo encontrado no Facebook a vacina eficaz contra a audiofilia crónica de que eu padeço sem remorso;
O MC275LE reconciliou-me com a tecnologia de vácuo quando, ao ouvir alguns dos actuais grandes protagonistas de estado sólido, a dúvida se começava a instalar no meu espírito;
O MC275LE reconciliou-me também com as longas audições, noite dentro, numa voragem discográfica obsessiva, quando ultimamente um par de auscultadores e um DAC HD me ofereciam um módico diário de consolo audiófilo;
O MC275LE reconciliou-me ainda com a indústria áudio que entrou numa espiral de preços inflaccionados para lá da razão, que faz sofrer o coração;
O MC275LE reconciliou-me - last but no least - com a vivência musical quotidiana, arrancando-me da letargia do futebol e da política mórbida de sofá, e fez-me sentir saudades do tempo em que ainda tinha a capacidade de me emocionar com a música.
Let me go back, for a while
To that magic time
You can call it nostalgia, I don’t mind
Van Morrison
Longe vai o tempo do grave balôfo, do médio mavioso e do agudo redondo do vácuo. O som do MC275 é uno e indivisível e rege-se pelo ritmo da genial batuta do maestro Sidney Corderman, pautando a respiração e a transpiração pelo movimento sincopado de cada processo musical em curso.
O palco sonoro é de uma precisão e realismo topográficos; os tons e as cores explodem numa orgia impressionista de luz, num retorno à natureza pródiga da música.
A tactibilidade das texturas, a tangibilidade dos corpos e a verosimilhança das vozes, no contexto da fluidez da narrativa sonora, não têm paralelo na minha vasta experiência com nenhum outro amplificador de 10 000 euros independentemente da tecnologia, modo e classe de funcionamento.
Preço: 9 199, 90 euros
Para mais informações: AJASOM
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Unity Coupled (descrição técnica simplificada)
O circuito Unity Coupled é uma variante patenteada de topologia «ultralinear», na qual a malha de realimentação se obtém pela ligação de diferentes enrolamentos do primário ao cátodo e à placa (ânodo) que contribuem em partes iguais.
Na topologia «ultralinear», a malha de realimentação depende do desacoplamento parcial do cátodo, ligando a grelha por meio de uma resistência de valor moderado a uma tomada do mesmo enrolamento primário, aproveitando assim alguma potência útil, e jogando com a proximidade à placa para garantir um modo quasi-tríodo; ou então ao rail de alta tensão para obter os benefícios de maior potência no modo-pêntodo.
A topologia Unity Coupled serve-se de enrolamentos primários bifilares, cuja proximidade garante um melhor acoplamento magnético e elimina a distorção de «corte» ou transição dos meios ciclos.
Com o circuito dividido em partes iguais (50/50) pelo cátodo e pela placa e a malha de realimentação com base nos primários bifilares, o andar de saída está permanentemente equilibrado e dispensa ajuste de polarização.
Sendo um amplificador push-pull, o MC275 comporta-se quase como um circuito em Classe A, no qual um dos fios do enrolamento do primário de cada canal é ligado através da fonte de alimentação à placa e ao cátodo de uma das válvulas responsável por amplificar o meio-ciclo positivo e o outro do mesmo modo à válvula que amplifica o meio-ciclo negativo, eliminando-se a interferência magnética gerada pelo núcleo (core flux), na ausência de corrente alterna durante a transição entre ciclos e o consequente pico de distorção.
O circuito funciona quase como um sistema de vasos comunicantes. Quando a tensão do cátodo (filamento) da válvula condutora sobe, a tensão do ânodo (placa) desce. Na outra válvula verifica-se exactamente o oposto (push-pull). Ao ligar via transformador a grelha do cátodo de uma válvula cuja tensão sobe à placa da válvula oposta cuja tensão desce na exacta proporção, a tensão da grelha de ambas as válvulas mantém-se igual e estável, e o ajuste de polarização deixa de ser crítico: se uma válvula pifar substitui-se por outra igual e está pronta a tocar.
Nas versões mais recentes, como o MC275 VI 50Th Anniversary, o terceiro fio do enrolamento trifilar dos primários é ligado às placas do seguidor de cátodo, obtendo-se assim uma largura de banda de 100 000 ciclos. Absolutamente genial!...
O MC275 tem o habitual padrão de distorção de 2ª harmónica (-70dB), contudo muito inferior ao típico amplificador a válvulas, sobretudo nas baixas frequências, e é o único que eu conheço capaz de reproduzir ondas quadradas perfeitas tanto a 1kHz como a 10kHz com excelente tempo de subida e sem “overshoot”. Notável também é a baixa impedância de saída e o consequente factor de amortecimento (passou de 14 para 22 no 50th Anniversary).
Mas para terminar em jeito de homenagem, deixem que seja o próprio Gordon Gow a explicar em 10 minutos aos mais interessados como funcionava o circuito Unity Coupled original, num video cortesia da Audio Classics: