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2000

O Mistério Do Forte De S. Filipe - Parte 1



Reprodução da página do DNA/Sons com o artigo original cujo texto aqui se publica



O MISTÉRIO DO FORTE DE S.FILIPE


A vista da magnífica esplanada da Pousada ressarciu-me da longa subida pelos degraus de lajes gastas pelos passos da história: os olhos espraiaram-se deslumbrados pelo estuário do rio, que corria manso e indiferente lá em baixo, polvilhado de barcos aguardando impacientes a sua vez de serem recebidos pela Rainha do Sado. Alcandorado e protegido por muralhas outrora ferozes, o Forte de S. Filipe mantém, sob a farda coçada pela inexorabilidade da passagem dos séculos, a postura militar original. Do outro lado, Tróia: o atentado eco-urbanístico das torres erguendo-se como um furúnculo na pele de areia fina das dunas (parece que é desta que vão abaixo).



Carolina Marafusta, a simpática directora da Pousada, juntou-se a nós para interpretar o repertório restaurativo, com a sensibilidade artística do maestro que sabe de cor a pauta gastronómica e dirige do cravo uma orquestra barroca com gestos breves e significativos. A sala estava cheia de comensais,entre turistas e políticos, rendidos como eu à excelência do cardápio e à beleza do cenário.



MEMÓRIAS DE INFÂNCIA



Senti-me regressar à infância, à hospitalidade serena da casa da minha avó, em dia de almoço de família: pão e vinho sobre a mesa, os petiscos sábios e sápidos em pratinhos individuais, o borreguinho tenro e as deliciosas cascas de laranja cristalizada caseiras, que eu - já lá vão mais de 40 anos, meu Deus!... -, surripiava e escondia no bolso dos calções para dar aos amigos, e ela fingia não ver com um sorriso benevolente
desenhado no rosto pelo traço fino das rugas. Como é bom reencontrar os sabores que se perderam na vertigem do tempo. No fim do repasto, quando todas as pétalas do bouquet do Pegos Claros-94, tinto, se abriam finalmente à curiosidade do meu olfacto, fui conduzido sob escolta às medonhas masmorras do Forte de S. Filipe, sobre o qual assenta, desde 1965, o actual edifício da Pousada. E, no mesmo local on-
de outros penaram no passado, expiando porventura os crimes cometidos, senti-me também eu culpado: cheguei, vi e ouvi, sem ter mexido uma palha. O sistema de som, fora ali previamente colocado pelos meus anfitriões à custa de fadigas mil, por escadas e galerias
secretas e portas de grades ferrugentas, assim se autocondenando a trabalhos forçados, com o único objectivo (pensava eu) de me provar - como se eu não soubesse já - que LP é melhor que CD. Era esse pelo menos o teor da aposta original.



A MINHA SURPRESA



Esperava-me, contudo, uma surpresa: depois de um percurso sinuoso, ao entrar numa sala de paredes de pedra, tão grossas que os telemóveis logo ali - por uma vez, caramba! - emudeceram, quedando-se inúteis no bolso, deparei com dois misteriosos encapuçados. Brrr!, cheguei a temer o pior: da proposta inicial de uma simples audição, ter-se-ia passado para uma execução ao vivo?! Ou seria a versão audiófila do Homem da Máscara de Ferro? Talvez do Conde de Monte Cristo?

Debaixo da capa estava o segredo: Harpa - nome comercial de um projecto concebido por três jovens engenheiros portugueses, Carlos, João e José, que preferem assim manter o anonimato, não por vergonha da obra concebida, mas porque acham que só a obra dever ser divulgada: umas colunas de som de seis vias e filtros de pendente suave (1ª ordem) complementados por filtros mecânicos (câmaras internas de absorção selectiva): duas unidades de médios-graves, uma unidade de médios; um poderoso «sub-graves» escondido nas entranhas que dispara para os pés, todos em
polipropileno HDA da Audax; e ainda: tweeter da Vifa; e, last but not least, um raro «supertweeter» de corneta da Visaton, colocado lateralmente, porque, e cito: «É assim que soa melhor!, garantiu o Carlos, com o mesmo entusiasmo transbordante que eu sentia, quando me dedicava à inglória tarefa de construir as minhas próprias colunas de som e amplificadores, a partir de kits importados à candonga. Agora critico o trabalho dos outros - é a vida, como diria Guterres.



A CONVERSAR NOS ENTENDEMOS



- «Criámos software específico para as medições, mas concluímos que não há nada que chegue ao ouvido humano», confessou o João.



- «Há anos que cheguei à mesma conclusão...», corroborei eu.



- «O Luís (Pires), da GP Audio e Video, deu uma ajuda na afinação e...».

O Luís interrompeu-o de imediato:


- «Estive até às tantas da manhã a dar os últimos retoques... o tweeter
estava um bocadinho vivo, limei umas arestas e... acho que assim está bem... a acústica aqui é má, lá em casa soaram muito melhor...».



O João rematou a conversa preliminar com sinceridade e preparando-se para o pior:



- «Ainda não estão a 100%, atenção, mas queríamos a sua opinião, sá para sabermos se vale a pena continuar...».



- «Querem mesmo saber o que eu penso?...», perguntei ex-catedra, fazendo uma pausa que os deixou suspensos naquele cenário de catacumba. Aparentemente, estavam dispostos a ser enterrados vivos por um escriba menor, e tudo em nome de um sonho. Como se o sonho não fosse uma constante da vida, que nada nem ninguém pode destruir. Quantos sonhos de gente que por ali passou não estão ainda gravados nas paredes escalavradas e frias que guardam o sono feliz dos que agora lá se hospedam no conforto de lençóis a cheirar a alfazema?...


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