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2001

Crónica: Uma Dentada Na Maçã



Greenwich Village e Soho já foram coito de poetas da beat generation, artistas falhados e estudantes cábulas em busca de rendas consentâneas com as magras bolsas. Hoje são terreiro de galerias de arte, restaurantes pretensiosos e bares com o charme discreto da burguesia e da boémia estudantil das bolsas chorudas. O choque fica a um passo do chique em NY.


Little Italy está inundada de gente de Canal Street e Mott Street que transbordam das margens de Chinatown, onde se pode comprar um TAG Heuer por dez dólares ou uma mala Gucci por vinte. Os poucos resistentes genuinamente italianos trabalham nos restaurantes: vestem calças pretas e longo avental branco, falam como as personagens dos «Sopranos», beijam nas duas faces os clientes conhecidos e chamam os passantes, como se faz por cá na Feira Popular, da balaustrada das esplanadas montadas nos passeios estreitos de Mulberry Street, decorada com bandeirinhas tristes de fim de festa. Típico q.b. para uso externo de turistas e interno de yuppies em mau dia na Bolsa de Wall Street, com a desculpa de estarem enjoados da comida afrancesada dos restaurantes finos de NY...


É preciso ir ao Harlem e ao Bronx ou aos bairros maioritariamente negros de Brooklyn e Queens para ver a paisagem humana, os graffitti (os tais que o director da polícia de NY queria proibir em Lisboa), o lixo e a exclusão social que nos habituámos a ver nas séries policiais da TV.


O mayor Giuliani está agora mais preocupado com o divórcio e a polémica constitucional sobre se a namorada Nathan pode ou não entrar na zona residencial do City Hall, onde ainda vivem a mulher e os filhos, depois de cumprir o que prometera aos seus eleitores: esconder o lixo social debaixo do tapete.
No coração de Manhatan pode hoje andar-se por todo o lado sem temer pela bolsa ou a vida, e precisei de ligar a televisão para saber que dois «dealers» de bairro tinham sido mortos por um traficante numa pensão rasca; ou que o FBI abatera a tiro, numa cena digna de um filme, um foragido da justiça, ali mesmo perto do Hilton onde me alojei. Os «dealers» eram negros, o foragido «latino», explicou o chefe da polícia irlandês. Tudo normal, portanto.


À noite lavam-se as ruas e as toneladas de lixo desaparecem como por milagre levadas por um exército de imigrantes. Na manhã seguinte, os nativos podem continuar a viver como se nada se tivesse passado: saem apressados com sacos de compras das lojas Armani, Versace e Façonnable, evitam com perícia os clientes que entram de rompante empurrados pelas pás das portas rotativas e, sob o olhar atento de negros enormes fardados de porteiro, desaguam nos passeios da 5ª Av ou da Madison engrossando o caudal tumultuoso do trânsito que reclama numa sinfonia de buzinas amarelas. Do aparente caos resulta uma paradoxal ordem urbana e cívica: NY é uma cidade organizada a pensar no cidadão - não necessariamente em todos os cidadãos...


St. Patrick's Cathedral, construída em 1879 em glória de Deus nas alturas: o gótico anacrónico surpreende quando as torres, elevando-se ao Céu numa prece entre arranha-céus construídos em glória do homem, nos surgem imponentes e delicadas ao dobrar a esquina da Rua 51, vindos do Rockfeller Center. No interior reza-se o terço em som surround e acendem-se velas devotas que se derretem dólar a dólar na caixa das esmolas. Até pela vida eterna há um preço a pagar...


Não tanto como vai ter de pagar se jantar num bom restaurante. E são às centenas em NY. Se pretender cumprir o ritual dos aperitivos, das entradas, dos primeiros e segundos pratos, vinhos, sobremesas e digestivos, benza-se primeiro. Ou então peça apenas uma salada e divida a meias com o seu parceiro/a. Beba água da torneira com gelo que é de borla. E cuidado com a gorjeta: se não dá, eles zangam-se; se dá pouco, ofendem-se...


Em alternativa coma um cachorro (são muito mais românticos vistos nos filmes) nas escadarias do Metropolitan Museum (o Guggenheim estava em obras) e vá depois em peregrinação ao passado. Não perca a colecção de objectos de arte do Antigo Egipto: pedras que contam histórias, estátuas, templos, sarcófagos e respectivas múmias. Se prefere múmias mais recentes, visite no 1º andar a exposição do guarda-roupa de Jacqueline Onassis.


São assim os povos sem história: roubam o passado aos povos com história e revêem-se no seu próprio presente com a má consciência dos impérios, de cuja queda restam os cacos que é preciso catalogar para depois exibir. Em que Museu do mundo repousarão um dia os cacos do Império Americano?


No Central Park, novaiorquinos vestidos pela Nike correm, patinam e pedalam, num remake obsessivo de «Os Cavalos Também Se Abatem», dando voltas sucessivas a um perímetro preestabelecido até caírem para o lado de fadiga: empurrando carrinhos de bebé aerodinâmicos ou levando cães pela trela, ultrapassam na ânsia da fuga ao colesterol e ao stress os pachorrentos coches com turistas puxados por cavalos gordos de patas peludas. Ou então passeiam simplesmente, ou lêem avidamente (as livrarias regurgitam de leitores, essa espécie tão rara em Portugal) entre flores, árvores e esquilos brincalhões, na magnífica relva do último obstáculo ao avanço dos construtores civis da cidade, que, do alto da Trump Tower, espreitam a oportunidade de uma aberta no verde até agora inexpugnável do parque que continua a ser a reserva ecológica da cidade.


Na outra ponta da ilha, os turistas atravessam a ponte a pé: de Brooklyn para Downtown Manhatan, com o imponente cenário das Torres Gémeas a eternizar-lhes as fotografias, depois de já terem subido em nervoso magote ao alto da Torre de Babel - o Empire State Building - só para terem o mundo a seus pés.
Não se sai de NY sem uma passagem por Times Square, a foz do rio do teatro, um autêntico delírio de néons coloridos e de gente nas ruas, onde desagua a Broadway e seus afluentes. A dificuldade está na escolha: «O Fantasma da Ópera» aguenta-se ainda no Majestic Theatre; a «Aida», de Elton John e Tim Rice, ganhou o Tony para a Melhor Música, «Les Misérables», «42nd Street», «Contact», no Lincoln Theatre e «Kiss Me Kate», no Martin Beck Theatre, a reposição do maior êxito de Cole Porter, o musical romântico por excelência, uma carta de amor cantada.


I LOVE NY.

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