O princípio legal do «uso lícito» está na base das gigantescas bases de dados de acesso livre que permitem a troca pessoal sem intuitos comerciais da chamada «cópia única» autorizada. Qualquer pessoa pode fazer uma cópia digital para uso pessoal de um disco que tenha comprado numa loja. Essa cópia é lícita e livre de encargos ou taxas por utilização de copyright, que estão, ou deviam estar, já incluídas no preço do disco, logo pode ser disponibilizada na rede, desde que daí não advenha qualquer benefício para o próprio - usufruto e propriedade são conceitos diferentes.
A legalidade desta prática é discutível e a queda abrupta das vendas (embora o problema do CD esteja também relacionado com o sucesso do DVD) levou as editoras a accionar judicialmente os principais «sítios», como a Napster e a Audiogalaxy, acusando-os de tráfico ilícito de propriedade intelectual, algo muito difícil de provar mesmo para o bem preparado exército de advogados das poderosas multinacionais: a solução encontrada foi quase sempre a dos acordos extrajudiciais. Ou seja: as editoras ao princípio toleram-nos, porque são uma forma barata de divulgar novos músicos e tendências (comprei muito discos originais depois de os ouvir em MP3) e os criadores dos «sítios» servem-se dos incautos utilizadores para inflaccionar a sua importância, até que começam a tornar-se perigosos para os interesses das editoras. Estas ameaçam-nos então publicamente com processos de milhões, e aqueles, porque conhecem bem as regras do jogo, aceitam desmontar a tenda a troco de uma verba adequada e vão acampar para outro lado. Em alguns casos, são autênticos pontas-de-lança das próprias editoras, pois só assim se explica que certos discos apareçam na rede antes de serem comercializados.
O universo «web» é infinito e há ainda muitas «galáxias» por descobrir. É uma questão de tempo. Por isso as editoras servem-se agora da sua influência política para exigir medidas legislativas radicais que combatam a actual atitude de autêntico desafio ao seu poder económico.
Howard Coble e Howard Berman, dois congressistas americanos, vão apresentar em breve uma proposta de lei que proíbe a «cópia lícita» mesmo que para uso pessoal. Estes congressistas foram os mesmos que conseguiram aprovar legislação que prevê cinco anos de cadeia para quem pedir autorização para abrir um «site» cuja utilização não corresponde à declarada, no âmbito das leis de segurança antiterrorista aprovadas depois do 11 de Setembro. Daí a considerar-se terrorista um inofensivo cidadão que gosta de fazer compilações para ouvir no carro vai um passo. E quem vai arriscar cinco anos na choça mesmo com a conivência tácita das editoras, que choram agora lágrimas de crocodilo, depois de durante quase 20 anos encherem a pança vendendo por três contos o que lhes ficava por cem paus? É que antes era apenas matéria cível agora é crime público...
A repressão, como sabem, nunca resolveu nada, e vai acontecer com o tráfico ilícito de música o que aconteceu com a droga: toleraram-na durante demasiado tempo e agora já não sabem o que é pior: a catástrofe económica se ela acabar ou a catástrofe social se ela continuar. Com a música pelo menos o «social» sai a ganhar. E mal por mal sempre é um vício benigno...
A SIC Radical teve a amabilidade de me convidar para o debate mas, estando eu em merecido gozo de férias, optei por participar apenas por telefone. Acontece que o que era suposto ser uma participação de alguns minutos ficou-se por alguns segundos que deixou no ar mais dúvidas que certezas. Eis a minha posição sobre o assunto:
1. As editoras têm o direito de defender o seu património intelectual e comercial, desde que respeitem os direitos dos consumidores, porque nem todos são piratas e, perante a lei, são inocentes até prova em contrário.
2. A maior parte dos sistemas anticópia não só não impedem a cópia como degradam a qualidade do som, quando não são mesmo invasivos da privacidade do consumidor. Uma cidadã americana apresentou queixa em tribunal porque comprou um disco protegido sem rótulo exterior de aviso que obrigava a instalar um programa para poder ser reproduzido na drive do seu computador. Pouco tempo depois, começou a receber no correio electrónico «newsletters» da editora propondo-lhe outros títulos dentro do mesmo género musical. Descobriu então que ao correr o programa de acesso ficava automaticamente registada na base de dados da editora. O tribunal considerou que houve violação da privacidade, porque a queixosa não fora previamente informada no acto de compra.
3. O consumidor tem o direito de ser informado - antes de comprar o disco - que este está protegido e pode não ser compatível com a drive do seu computador, o leitor-CD do autorádio ou o leitor-DVD. Segundo a Philips, que tendo vendido a Polygram não está agora tão preocupada com a situação, este discos nem deviam designar-se por «CD», porque, segundo o «Livro Vermelho», todos os «CD» são por norma obrigatória compatíveis com os equipamentos referidos.
4. E não são compatíveis porquê?
Com os leitores-CD convencionais normalmente não há problema. Mas alguns sistemas anticópia baseiam-se na interpolação de erros na trama digital para baralhar as drives dos computadores. Os leitores-CD dos autorádios e leitores-DVD também não estão preparados para digerir tanta «porcaria» digital. Os sistemas de correcção de erros ficam a funcionar no limite da sua capacidade. Ora, basta que o disco se deteriore com o tempo (que não tem em casa discos com buracos na metalização? aponte o disco para uma luz intensa e conte-os...) para se tornar «intocável» mesmo num leitor-CD normal. Se isto suceder passado um ano, a editora devolve o dinheiro ao consumidor?...
5. A pirataria na internet é imparável. Ninguém segura o MP3. Porque, mesmo que o sistema seja eficaz (e nunca é) é sempre possível copiar o disco sob formato analógico e redigitalizá-lo: tudo o que é reproduzível é copiável.
6. Neste momento a grande aposta das editoras é o Super Audio CD, um formato de alta resolução compatível com os leitores-CD mas não com as drives dos computadores. O sistema anticópia não afecta a qualidade do som e é intransponível porque o algoritmo de encriptação não está integralmente contido no disco, estando parte da chave composta por 80 bits «dissimulada» no «hardware» de prensagem e leitura. Mesmo que fosse possível obter uma cópia bit-a-bit, seriam necessários meses para um «hacker» genial descobrir os elementos em falta na chave dos códigos de acesso - que varia de disco para disco! Além de que os 4,7GB de informação e a configuração multicanal (6-ch de banda larga) não são «digeríveis» pelo MP3...
7. Era ao Super Audio CD que Tozé Brito se referia na véspera no Curto-Circuito, quando revelou que a Universal iria apresentar em Setembro um sistema anticópia «à prova de bala». De facto, a Universal e a Sony preparam-se para editar tendencialmente no futuro todos os novos discos neste formato (ver DNA de 15 e 22 Junho). Contraditório é o facto de a estreia se fazer num contexto jurássico: a reedição dos 22 álbuns dos Rolling Stones em SACD. Copiar só se for para fins de estudo paleontológico...