Nas últimas duas décadas, tenho lutado por criar um estilo próprio de «escrítica» áudio, cujo objectivo fundamental é tentar transmitir por palavras as minhas emoções acústicas (e visuais) e não apenas veicular opiniões definitivas sobre a eventual boa ou má performance dos equipamentos. Na vida só a morte é definitiva.
O léxico específico e a semântica particular desta escrita «entrópica» vai permitir a um leitor leigo «dar nome» às suas próprias emoções quando exposto a uma experiência acústica idêntica. É mais fácil viver os sentimentos quando temos capacidade para os descrever: os poetas que o digam.
Contudo, as variáveis são tantas (sala de audição, condições acústicas, equipamento complementar, experiência e estado psicológico do ouvinte, género musical preferido e até a temperatura e humidade ambiente) que difícilmente duas pessoas em contextos diferentes podem chegar a uma mesma conclusão sobre um determinado equipamento de som. Mas daí a pensar-se que é tudo uma questão de gosto pessoal vai apenas a distância de uma má decisão.
Harry Pearson, editor da revista The Absolute Sound, enunciou há três décadas as normas da objectividade mínima na crítica subjectiva, passe a aparente contradição entre termos. Primeiro, é preciso criar uma uniformidade semântica e atingir o entendimento perfeito do diferente significado de expressões como ambiência e palco sonoro, carácter, coloração e textura, focagem e definição, resolução de alto e baixo nível, microdinâmica e gradação dinâmica, especificidade e dimensão da imagem, etc.
Ao encontrar diferenças entre componentes tecnicamente iguais durante uma audição, ou desvios da referência - que, neste caso, só pode ser o som dos instrumentos ao vivo -, o crítico deve primeiro hierarquizá-las (na justa medida em que afectam a reprodução) para que o leitor possa chegar à sua própria conclusão. Estabelecidas as balizas da objectividade, o crítico pode depois, dentro de limites razoáveis, dar largas à subjectividade, mas apenas como forma de embelezar o texto nunca a realidade.
No meu caso, coloco primeiro a especificidade da imagem e só depois a dimensão: a focagem, solidez e estabilidade da imagem estéreo são para mim mais importantes que um palco sobredimensionado, quantas vezes obtido à custa do excessivo afastamento entre as colunas. E, no contexto filosófico do I Ching, admito que sou mais adepto das cores quentes e escuras do Yin que do brilho frio do Yang. Mas isso não deve afectar nunca o meu discernimento da realidade nem a descrição que dela faço ao leitor.
Assimilada esta linguagem «entrópica», e compreendidos os conceitos que lhe estão subjacentes, é possível estabelecer denominadores comuns que permitem a pessoas diferentes, separadas no tempo e no espaço, chegarem a conclusões semelhantes sobre um mesmo equipamento ouvido em condições diversas.
Apenas dois exemplos recentes:
Depois de, em Janeiro, ter exultado, em Las Vegas, com o som do casamento entre os amplificadores a válvulas Tenor e as colunas Rockport (que nunca tinha ouvido antes), vejo agora na última edição da revista The Absolute Sound o crítico utilizar os mesmos argumentos para as elogiar: foram feitos um para o outro, afirma.
Em Maio deste ano, escrevi no DNA:
«Tudo se conjuga para que o Krell FPB 400cx seja o primeiro grande amplificador estéreo a transístores a justificar a minha nota máxima... Aposto dobrado contra singelo que Martin Colloms desta vez se vai render à tecnologia CAST II...»
Na HiFiNews de Agosto, Martin Colloms atribuiu ao 400 cx a nota mais elevada de sempre e rendeu-se finalmente às virtudes da tecnologia CAST.
Audiofilia confunde-se com telepatia? Não, isto significa apenas que, porventura, utilizamos a mesma «semântica-áudio», embora escrevamos em línguas diferentes, pelo que as diferenças de gosto, personalidade, formação, etc., não afectam o enquadramento objectivo da análise. Afinal, talvez haja alguma objectividade na subjectividade da crítica.
A não ser que prefiram acreditar na teoria C37 de Dieter Ennemoser que defende que o som de umas colunas é tanto mais agradável quanto mais a sua estrutura e temperatura se aproximar dos ossos humanos: carbono a 37 graus centígrados. Eu já tinha chegado a essa conclusão mas em relação ao sexo. Segundo Ennemoser, é na estrutura C37 - e não no verniz - que reside, por exemplo, o segredo do som dos Stradivarius.
Será a isto que o povo chama «os ossos do ofício»?...