Deixei propositadamente a sala principal da Imacústica para o fim porque, neste caso, me interessava fazer uma análise sociológica comparativa entre o que o público em geral pensa, a avaliar pelos comentários obtidos no local da audição, e a avaliação feita por leitores com legítimas pretensões a «críticos de áudio», cuja colaboração o Hificlube agradece e incentiva.
Numa primeira análise, é óbvio que há um divórcio. Tal como o que se verifica, por exemplo, entre os críticos de cinema do Expresso, que dão 5 Estrelas a filmes que ninguém vê, e o público, que esgota sucessivamente as plateias dos «blockbusters» da indústria cinematográfica de Hollywood. Há aqui um claro preconceito cultural, muito enraizado na velha Europa, que funciona quase como uma defesa subliminar contra a supremacia americana.
É ainda este preconceito que leva a organização do Festival de Cannes a homenagear Manoel de Oliveira em privado, enquanto o público cá fora faz bicha para ver as grandes vedetas mundiais, quase todas americanas ou ligadas a Hollywood.
Os festivais de Cannes e Veneza, para referir apenas os mais mediáticos, são cobertos por especialistas em meia página de jornal e têm direito aos seus 5 minutos de fama no telejornal, enquanto a cerimónia dos Óscares é vista por milhões de pessoas em directo noite dentro.
No Audioshow, só houve uma «grande produção», a da Imacústica: Krell/Martin Logan/Wilson, tudo o resto foi «cinema de autor», daqueles filmes que passam fora de horas nos cinemas-estúdio. Nas grandes produções, o público é esmagado pela superioridade tecnológica e a trama é linear: tudo é colocado perante os nossos olhos (e ouvidos) em tamanho «maior-que-o-natural» sem subtilezas de estilo. O cinema de autor obriga a uma certa disponibilidade do espectador e a uma bagagem cultural razoável para a sua compreensão e fruição plena.
Os que ainda não se perderam nesta longa metáfora cinematográfica, já perceberam onde quero chegar. São hoje poucos os que compreendem qual é a vantagem de se estar sentado a olhar para o vazio numa sala iluminada por tríodos de aquecimento directo, apenas porque reproduz alegadamente na perfeição o timbre de um oboé ou a voz angelical de um soprano como Emma Kirkby, quando pode ver a cores o «Tango das Confissões», do musical Chicago, com todo o impacto, dinâmica e dramatismo da imagem, da banda sonora e... a Zeta-Jones. São posições irreconciliáveis.
Ora não se pode assistir a «filmes» de génese cultural diferente sem uma mudança de atitude. Tal como na lei, não se pode tratar de forma igual o que é diferente e vice-versa. Numa sala enorme, com cem pessoas lá dentro, e o sistema com as goelas abertas a reproduzir programas com som 5.1, eu não posso ir à procura de especificidades tímbricas ou de imagem, do mesmo modo que não posso exigir a um «tríodo» que reproduza «Chicago» com toda aquela pressão sonora e ataque.
Um dia, creio que em S. Francisco, assisti à estreia mundial dos X-1, os «subs» dedicados das Wilson Slamm. Na altura, a Wilson ainda utilizava amplificação Krell (agora mudou para a VTL, opção acústica ou zanga de comadres?). Estava presente o oscarizado engenheiro responsável pelo som de Jurassic Park (não me recordo agora do nome). Vimos (e ouvimos!) um excerto do filme (a cena da cozinha). No final, o homem que tinha criado a banda sonora do filme disse: «É isto que está na banda sonora. Foi isto exactamente que acabámos de ouvir aqui...». E o que se ouviu foi emocionante mas por vezes brusco e agressivo quando não mesmo desagradável com todas aquelas panelas a cair. A questão é esta: queremos ouvir o que está na banda sonora ou o nosso conceito do que devia lá estar?...
Numa das sessões na sala da Imacústica, ouvi à saída o seguinte comentário negativo entre muitos elogios: «Isto parece um PA !...». Acontece que tínhamos acabado de ouvir Bela Fleck and The Flecktones num desconcertante concerto ao vivo com solos de fagote!... Ora nos concertos ao vivo utilizam-se PAs. E o que se ouviu não deve ter andado longe da verdade, por muito que isso doa aos puristas...
Na Sexta-feira, cerca das 16 horas, entrei na sala meia-vazia (ou seria meia-cheia?) e não gostei do que ouvi: o grave ainda não estava bem integrado, o som estava desgarrado e agressivo, os registos médios reflectiam-se com dureza nas paredes e o tweeter das Wilson não perdoava uma certa propensão do Showcase para enfatizar os agudos (pode ser corrigido com o igualizador interno). Até a Martin Logan Theater i, que conheço bem, me pareceu ostensiva na seu óbvio protagonismo a pedir alguma contenção. Mas no Domingo (seriam 8 horas da noite) eu e cerca de 80 testemunhas (ver foto: a única cadeira vazia é a minha) assistimos a uma exibição memorável, de tal forma que até Mariza brilhou em estéreo: Ah, fadista!...
Terá sido este o «Melhor Som» do Audioshow 2003? Não se pode tratar de forma igual coisas diferentes... O sistema Michell+AR+Theta+ProAC (o mais elogiado pelos leitores do Hificlube) é talvez no conjunto o que se aproxima dos padrões audiófilos canónicos, com alguns aspectos específicos da performance do sistema dCS+Nagra+Audio Physics a provar que as válvulas de potência ainda têm um palavra a dizer em determinados contextos de audição. Aqui e ali consegui isolar mentalmente o elevado potencial de alguns componentes: as Amphion Creon (musicalidade), o Chord BLU+DAC64 (ausência de jitter), o Linn LP12 (presença e corpo) e, além de umas fugazes pinceladas acústicas das BW Série 700 (a claridade dos médios), das Clarity (o corpo sem perda dramática de transparência dos registos médio-graves) e Neat Acoustics (a integração do médio e agudo), pouco mais. Penitencio-me por não ter ouvido um dos sons mais citados pelos especialistas: Manley+Klipsch.
Foi assim que ouvi o Audioshow 2003. Nem melhor, nem pior que os outros - apenas com os meus ouvidos ligados à base de dados do meu cérebro.
Nota: para uma avaliação mais completa e pormenorizada consulte todos os artigos relacionados nesta página
Numa primeira análise, é óbvio que há um divórcio. Tal como o que se verifica, por exemplo, entre os críticos de cinema do Expresso, que dão 5 Estrelas a filmes que ninguém vê, e o público, que esgota sucessivamente as plateias dos «blockbusters» da indústria cinematográfica de Hollywood. Há aqui um claro preconceito cultural, muito enraizado na velha Europa, que funciona quase como uma defesa subliminar contra a supremacia americana.
É ainda este preconceito que leva a organização do Festival de Cannes a homenagear Manoel de Oliveira em privado, enquanto o público cá fora faz bicha para ver as grandes vedetas mundiais, quase todas americanas ou ligadas a Hollywood.
Os festivais de Cannes e Veneza, para referir apenas os mais mediáticos, são cobertos por especialistas em meia página de jornal e têm direito aos seus 5 minutos de fama no telejornal, enquanto a cerimónia dos Óscares é vista por milhões de pessoas em directo noite dentro.
No Audioshow, só houve uma «grande produção», a da Imacústica: Krell/Martin Logan/Wilson, tudo o resto foi «cinema de autor», daqueles filmes que passam fora de horas nos cinemas-estúdio. Nas grandes produções, o público é esmagado pela superioridade tecnológica e a trama é linear: tudo é colocado perante os nossos olhos (e ouvidos) em tamanho «maior-que-o-natural» sem subtilezas de estilo. O cinema de autor obriga a uma certa disponibilidade do espectador e a uma bagagem cultural razoável para a sua compreensão e fruição plena.
Os que ainda não se perderam nesta longa metáfora cinematográfica, já perceberam onde quero chegar. São hoje poucos os que compreendem qual é a vantagem de se estar sentado a olhar para o vazio numa sala iluminada por tríodos de aquecimento directo, apenas porque reproduz alegadamente na perfeição o timbre de um oboé ou a voz angelical de um soprano como Emma Kirkby, quando pode ver a cores o «Tango das Confissões», do musical Chicago, com todo o impacto, dinâmica e dramatismo da imagem, da banda sonora e... a Zeta-Jones. São posições irreconciliáveis.
Ora não se pode assistir a «filmes» de génese cultural diferente sem uma mudança de atitude. Tal como na lei, não se pode tratar de forma igual o que é diferente e vice-versa. Numa sala enorme, com cem pessoas lá dentro, e o sistema com as goelas abertas a reproduzir programas com som 5.1, eu não posso ir à procura de especificidades tímbricas ou de imagem, do mesmo modo que não posso exigir a um «tríodo» que reproduza «Chicago» com toda aquela pressão sonora e ataque.
Um dia, creio que em S. Francisco, assisti à estreia mundial dos X-1, os «subs» dedicados das Wilson Slamm. Na altura, a Wilson ainda utilizava amplificação Krell (agora mudou para a VTL, opção acústica ou zanga de comadres?). Estava presente o oscarizado engenheiro responsável pelo som de Jurassic Park (não me recordo agora do nome). Vimos (e ouvimos!) um excerto do filme (a cena da cozinha). No final, o homem que tinha criado a banda sonora do filme disse: «É isto que está na banda sonora. Foi isto exactamente que acabámos de ouvir aqui...». E o que se ouviu foi emocionante mas por vezes brusco e agressivo quando não mesmo desagradável com todas aquelas panelas a cair. A questão é esta: queremos ouvir o que está na banda sonora ou o nosso conceito do que devia lá estar?...
Numa das sessões na sala da Imacústica, ouvi à saída o seguinte comentário negativo entre muitos elogios: «Isto parece um PA !...». Acontece que tínhamos acabado de ouvir Bela Fleck and The Flecktones num desconcertante concerto ao vivo com solos de fagote!... Ora nos concertos ao vivo utilizam-se PAs. E o que se ouviu não deve ter andado longe da verdade, por muito que isso doa aos puristas...
Na Sexta-feira, cerca das 16 horas, entrei na sala meia-vazia (ou seria meia-cheia?) e não gostei do que ouvi: o grave ainda não estava bem integrado, o som estava desgarrado e agressivo, os registos médios reflectiam-se com dureza nas paredes e o tweeter das Wilson não perdoava uma certa propensão do Showcase para enfatizar os agudos (pode ser corrigido com o igualizador interno). Até a Martin Logan Theater i, que conheço bem, me pareceu ostensiva na seu óbvio protagonismo a pedir alguma contenção. Mas no Domingo (seriam 8 horas da noite) eu e cerca de 80 testemunhas (ver foto: a única cadeira vazia é a minha) assistimos a uma exibição memorável, de tal forma que até Mariza brilhou em estéreo: Ah, fadista!...
Terá sido este o «Melhor Som» do Audioshow 2003? Não se pode tratar de forma igual coisas diferentes... O sistema Michell+AR+Theta+ProAC (o mais elogiado pelos leitores do Hificlube) é talvez no conjunto o que se aproxima dos padrões audiófilos canónicos, com alguns aspectos específicos da performance do sistema dCS+Nagra+Audio Physics a provar que as válvulas de potência ainda têm um palavra a dizer em determinados contextos de audição. Aqui e ali consegui isolar mentalmente o elevado potencial de alguns componentes: as Amphion Creon (musicalidade), o Chord BLU+DAC64 (ausência de jitter), o Linn LP12 (presença e corpo) e, além de umas fugazes pinceladas acústicas das BW Série 700 (a claridade dos médios), das Clarity (o corpo sem perda dramática de transparência dos registos médio-graves) e Neat Acoustics (a integração do médio e agudo), pouco mais. Penitencio-me por não ter ouvido um dos sons mais citados pelos especialistas: Manley+Klipsch.
Foi assim que ouvi o Audioshow 2003. Nem melhor, nem pior que os outros - apenas com os meus ouvidos ligados à base de dados do meu cérebro.
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