No ano da graça de 2003, cumpriu-se mais um Audioshow, cada vez mais distante do ideal que lhe deu origem: juntar num mesmo lugar os projectistas, os importadores e os ouvintes, potencialmente consumidores, das peças raras de arte audiófila, dita highend, que faziam as delícias dos leitores de revistas nacionais e internacionais (da Audio em especial, claro) durante o resto do ano. Era o encontro final do sonho com a realidade, o tira-teimas.
Era sobre esta dicotomia que versavam depois as conversas nos corredores. Com muita discussão e polémica sobre as alegadas qualidades de alguns produtos míticos (a mitologia funciona sempre melhor na ausência do mito...) e a sua performance efectiva.
Diz-se dos povos que têm os governos que merecem. Esse aforismo é igualmente verdadeiro para os audiófilos: têm o Audioshow que merecem. Deixaram aberta uma brecha por onde entrou a imagem que logo tomou o poder. Tal como na política, quando as coisas correm mal, culpa-se o governo. Mas a organização do Audioshow (que este ano teve a amabilidade de me enviar um convite pessoal e personalizado) limita-se a cobrar (muito) pelo espaço que aluga. Não é responsável por aquilo que os importadores, distribuidores e revendedores vão lá expôr ou demonstrar. Por outro lado, estes alegam que se limitam a dar ao povo o que o povo quer. E o povo quer AV, plasmas e surround e acha que o estéreo, as válvulas e os gira-discos são coisas de «velhos» e fundamentalistas retrógados. Contrariar as tendências do mercado (já é assim em todo o mundo até no templo do Kempinski, em Frankfurt), seria um sucídio comercial - e os tempos não estão para «suicídios comerciais», quando muito estão para suicídios «tout court».
Nós, os «fazedores de opinião», também temos culpas no cartório. Ao escrever sobre coisas que ninguém compreende, não soubemos cativar o povo audiófilo para as delícias do highend, normalmente feio, diga-se, complicado e caro, do mesmo modo que a crítica literária já não consegue fazer vender literatura séria e apoia-se na literatura de hipermercado para sobreviver.
A médio prazo, o facilitismo destrói a cultura por dentro: a cultura exige estudo, sacrifício. Joyce, pronto, não vamos tão longe, Thomas Mann, ou outro, «sei lá«, Lobo Antunes, por exemplo, é mais complicado de ler que a Margarida. Logo, vende-se menos. E o negócio dos editores é número, como dizia Jô Soares.
No dia em que o primeiro préamplificador a válvulas apareceu com controlo remoto, foi o princípio do fim. Era a admissão da falência de uma filosofia baseada na convicção de que é preciso sofrer (levantar o cú do sofá para subir o som, por exemplo) para ganhar o céu.
Porque os audiófilos também se repartem por diferentes ideologias: há os de esquerda, normalmente associados ao analógico e às válvulas; e os de direita, muito modernaços, politicamente correctos, leia-se transistorizados e adeptos do CD e do SACD.
Depois, surgem as franjas ideológicas: a extrema esquerda dos «single ended», das colunas de corneta, das células com bobinas enroladas à mão, fundamentalistas que se guiam pelos textos sagrados dos anos 50 e falam numa linguagem cifrada e incompreensível até pelos que pensam que percebem alguma coisa de hifi; e os de extrema direita, fanáticos da digitalização total, da transmissão sem fios, do «multiroom» e dos gravadores áudio/vídeo com disco rígido que convertem tudo para MP3 para facilitar o acesso e a armazenagem.
Fora do sistema estão os «anarquistas» do DIY, dos OTL, das colunas e dos gira-discos de exemplar único, que vomitam só de ouvir falar em «chips», e coleccionam discos com edições «direct-cut» de 100 exemplares de um tipo que ninguém conhece a tocar violino acompanhado pelo organista da paróquia.
No meio, está, por definição, o «centrão», uma massa simpática e indiferenciada, com mais ou menos poder de compra, e pouco convicta dos seus ideais audiófilos, que balança entre os filmes em DVD com muita porrada e som surround e os CD do Top+ em dois canais, e um ou outro SACD da Céline Dion.
Alguns têm rebates de consciência, informam-se, afastam-se da multidão e continuam em busca do Graal (mesmo que não saibam o que isso é), o tal equipamento transónico perfeito: o AV XPTO que se transcende na reprodução de CD de jazz e de música clássica. Que os há, há, tal como há homens mais bonitos que mulheres, que não são homens mas também não são bem mulheres. É curioso que sendo os transexuais ostracizados pela sociedade, os transónicos sejam adoptados como um ideal pela classe média-alta.
Pergunto: quem pode ser prior numa freguesia destas?
Ora não admira que a aposta de todos os intervenientes, a todos os níveis, no Audioshow, seja no «centrão». São mais e isso significa mais negócio: em «democracia» a maioria ganha sempre...
Aos audiófilos puros e duros só resta, pois, seguir o exemplo da lista perdedora da Sociedade Portuguesa de Autores: fundar outra sociedade, organizar outro Audioshow para a meia-dúzia de «vencidos» que ainda acredita que a terra é plana e que o «surround» é uma ilusão de... óptica. Eu topo - com condições. Mas aviso desde já: nem vai ser preciso um hotel, a pensão da coxa chega perfeitamente...
Nota: A direita conservadora revê-se no «establishment», leia-se mercado, que é dominado pelo «chip» e pelo digital. Neste contexto, os amantes das válvulas (e do analógico) não são os «conservadores» mas, ao contrário, os «revolucionários», que ousam pôr em causa o «status quo». Não é por acaso que há tantos jovens cultores destas tecnologias que são hoje autênticas bolsas minoritárias de resistência audiófila.
Era sobre esta dicotomia que versavam depois as conversas nos corredores. Com muita discussão e polémica sobre as alegadas qualidades de alguns produtos míticos (a mitologia funciona sempre melhor na ausência do mito...) e a sua performance efectiva.
Diz-se dos povos que têm os governos que merecem. Esse aforismo é igualmente verdadeiro para os audiófilos: têm o Audioshow que merecem. Deixaram aberta uma brecha por onde entrou a imagem que logo tomou o poder. Tal como na política, quando as coisas correm mal, culpa-se o governo. Mas a organização do Audioshow (que este ano teve a amabilidade de me enviar um convite pessoal e personalizado) limita-se a cobrar (muito) pelo espaço que aluga. Não é responsável por aquilo que os importadores, distribuidores e revendedores vão lá expôr ou demonstrar. Por outro lado, estes alegam que se limitam a dar ao povo o que o povo quer. E o povo quer AV, plasmas e surround e acha que o estéreo, as válvulas e os gira-discos são coisas de «velhos» e fundamentalistas retrógados. Contrariar as tendências do mercado (já é assim em todo o mundo até no templo do Kempinski, em Frankfurt), seria um sucídio comercial - e os tempos não estão para «suicídios comerciais», quando muito estão para suicídios «tout court».
Nós, os «fazedores de opinião», também temos culpas no cartório. Ao escrever sobre coisas que ninguém compreende, não soubemos cativar o povo audiófilo para as delícias do highend, normalmente feio, diga-se, complicado e caro, do mesmo modo que a crítica literária já não consegue fazer vender literatura séria e apoia-se na literatura de hipermercado para sobreviver.
A médio prazo, o facilitismo destrói a cultura por dentro: a cultura exige estudo, sacrifício. Joyce, pronto, não vamos tão longe, Thomas Mann, ou outro, «sei lá«, Lobo Antunes, por exemplo, é mais complicado de ler que a Margarida. Logo, vende-se menos. E o negócio dos editores é número, como dizia Jô Soares.
No dia em que o primeiro préamplificador a válvulas apareceu com controlo remoto, foi o princípio do fim. Era a admissão da falência de uma filosofia baseada na convicção de que é preciso sofrer (levantar o cú do sofá para subir o som, por exemplo) para ganhar o céu.
Porque os audiófilos também se repartem por diferentes ideologias: há os de esquerda, normalmente associados ao analógico e às válvulas; e os de direita, muito modernaços, politicamente correctos, leia-se transistorizados e adeptos do CD e do SACD.
Depois, surgem as franjas ideológicas: a extrema esquerda dos «single ended», das colunas de corneta, das células com bobinas enroladas à mão, fundamentalistas que se guiam pelos textos sagrados dos anos 50 e falam numa linguagem cifrada e incompreensível até pelos que pensam que percebem alguma coisa de hifi; e os de extrema direita, fanáticos da digitalização total, da transmissão sem fios, do «multiroom» e dos gravadores áudio/vídeo com disco rígido que convertem tudo para MP3 para facilitar o acesso e a armazenagem.
Fora do sistema estão os «anarquistas» do DIY, dos OTL, das colunas e dos gira-discos de exemplar único, que vomitam só de ouvir falar em «chips», e coleccionam discos com edições «direct-cut» de 100 exemplares de um tipo que ninguém conhece a tocar violino acompanhado pelo organista da paróquia.
No meio, está, por definição, o «centrão», uma massa simpática e indiferenciada, com mais ou menos poder de compra, e pouco convicta dos seus ideais audiófilos, que balança entre os filmes em DVD com muita porrada e som surround e os CD do Top+ em dois canais, e um ou outro SACD da Céline Dion.
Alguns têm rebates de consciência, informam-se, afastam-se da multidão e continuam em busca do Graal (mesmo que não saibam o que isso é), o tal equipamento transónico perfeito: o AV XPTO que se transcende na reprodução de CD de jazz e de música clássica. Que os há, há, tal como há homens mais bonitos que mulheres, que não são homens mas também não são bem mulheres. É curioso que sendo os transexuais ostracizados pela sociedade, os transónicos sejam adoptados como um ideal pela classe média-alta.
Pergunto: quem pode ser prior numa freguesia destas?
Ora não admira que a aposta de todos os intervenientes, a todos os níveis, no Audioshow, seja no «centrão». São mais e isso significa mais negócio: em «democracia» a maioria ganha sempre...
Aos audiófilos puros e duros só resta, pois, seguir o exemplo da lista perdedora da Sociedade Portuguesa de Autores: fundar outra sociedade, organizar outro Audioshow para a meia-dúzia de «vencidos» que ainda acredita que a terra é plana e que o «surround» é uma ilusão de... óptica. Eu topo - com condições. Mas aviso desde já: nem vai ser preciso um hotel, a pensão da coxa chega perfeitamente...
Nota: A direita conservadora revê-se no «establishment», leia-se mercado, que é dominado pelo «chip» e pelo digital. Neste contexto, os amantes das válvulas (e do analógico) não são os «conservadores» mas, ao contrário, os «revolucionários», que ousam pôr em causa o «status quo». Não é por acaso que há tantos jovens cultores destas tecnologias que são hoje autênticas bolsas minoritárias de resistência audiófila.