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2003

Ave, Cesare!



Cesare Bevilacqua é actualmente o rosto simpático da Sonus Faber. Genro de Franco Serblin, decano e vulto maior da cultura audiófila transalpina, é ele que em todo o mundo «dá a cara» pela prestigiada marca italiana de colunas de som criadas com amor e discrição por Franco Serblin: um «homem-sábio» que gosta de se manter na sombra e na pureza do silêncio musical e tem o raro dom da sensibilidade acústica e estética. Raramente temos o privilégio de o ver fora do seu país. As notícias do seu génio vão-nos chegando sob a forma de novos modelos, verdadeiras obras-primas da arte de trabalhar a madeira e de temperar o som, que Franco foi estudar nas antigas receitas de mestres artesãos de Cremona, prestando-lhes a justa homenagem ao dar aos modelos de topo o nome dos seus inspiradores: Guarneri, Amati. Franco confidenciou-me que tem em fase terminal o modelo-absoluto que será o seu legado técnico e artístico ao mundo: as Stradivarius.


Neste contexto, as Cremona são um «intermezzo», uma homenagem que abarca num único abraço toda a cidade berço de alguns dos mais famosos instrumentos de cordas da sua época áurea e não apenas um dos seus artesãos ilustres. As Cremona, que foram galardoadas na CES2002, de Las Vegas, com um «Design Engineering Award», seguem as pisadas das maravilhosas Amati, oferecendo muitos dos seus aspectos distintivos no design e tecnologia, por metade do preço, num tamanho mais adequado às actuais necessidades multicanal - não é fácíl acomodar quatro Amati no espaço vital de uma sala de estar e no espaço ainda mais exíguo das nossas carteiras (mas perca a esperança de comprar umas Cremona apenas com os trocos do porta-moedas...).


Na linha das Guarneri, as Cremona mantêm a curiosa secção em forma de alaúde, que de imediato suscitou descarados exercícios de plágio de muitos fabricantes, fascinados pela beleza e eficácia do projecto. Acontece que a verdadeira arte não é reproduzível em série. As Sonus Faber são arte e fruto do amor quase místico do seu criador pela música: tudo o que Franco gera é belo e perfeito - Cesare que é casado com a sua filha que o diga.
Cada coluna é montada a partir de 32 peças de ácer maciço laminado, esculpidas individualmente para formar um todo orgânico, cuja semelhança com a Amati chega ao ponto de, na ausência da referência original, se poder confundir com elas. Lado a lado, são óbvias as diferenças: no tamanho, na cor e no brilho, num reconhecimento, se não tácito pelo menos implícito, das críticas à exuberância do tom alaranjado e brilho quase ofuscante das Amati, que, ocorreu-me agora com surpresa, foram dos poucos modelos Sonus Faber que nunca testei. Não que esta análise breve das Cremona se possa considerar um teste formal, chamemos-lhe antes uma «primeira audição ingénua» que, quantas vezes, é a que deixa marcas mais profundas, porque nos apanha desprevenidos, sem as armas da razão que matam a emoção.


O banho de verniz semi-mate e a suave cor natural da madeira dá às Cremona um ar discreto e composto de «tailleur» de executiva de topo, por comparação com o cintilante «traje de luces» das Amati. Os altifalantes são uma vez mais da escola dinamarquesa construídos por medida sob a batuta de mestre Franco. O «tweeter» com o seu faseador protuberante é a estrela da companhia: linearidade, dispersão e extensão da resposta, num piscar de olho aos novos formatos áudio.


«As Cremona são o repositório de 20 anos de experiência. Não são apenas uma cópia em tamanho reduzido das Amati», Cesare dixit.


As Cremona, digo eu, têm uma personalidade muita própria: jovem, fresca, aberta, dinâmica, extrovertida, moderna, sem aquela discrição polida, aquele carácter introvertido que caracteriza quase todos os outros modelos da marca. São mais rápidas, mas também mais ligeiras na sua abordagem do processo musical. Diria que não têm o corpo e a «patine» tonal, quase que mística, a que Franco nos habituou, que confere ao som uma suave iluminação de catedral, misto de recolhimento e religiosidade, e permite ver o efeito que a música provoca dentro de cada um de nós, tornando as audições uma experiência espiritual mais do que física. Com excepção das minhas saudosas Extrema, que pegam no ouvinte pelos colarinhos e varrem o chão com ele. Que acontecimento extraordinário terá inspirado Franco, sempre tão sereno, sempre tão tolerante e compreensivo, a criar as Extrema, uma criatura acústica tão fabulosa quanto feroz? Como se de uma penada Franco pretende-se deitar cá para fora os últimos resquícios de raiva, desespero e de violência envolta em nobreza, e assim se purificar.


Grandiosa, sem contudo atingir a grandiloquência das Amati, é a imagem estereofónica da Cremona: ampla, profunda, com uma ilusão de altura que só experimento hoje com as Martin Logan Odyssey e aprendi a apreciar com as Apogee, que me ensinaram a diferença abissal que existe entre hifi e high-end - só ouvido se acredita.


O facto de também o altifalante de médios estar intimamente acoplado à sala de audição por um tubo de respiração (reflex), deixando escapar para trás o suave murmúrio das vozes numa inconfidência que a sala indiscreta amplia e divulga, parece estar na base desta expansividade.


São caras? A arte não tem preço tal como os anjos não têm sexo.


As Cremona foram ouvidas acolitadas por um conjunto Krell KAV300iL/280 CD, com cabos Transparent Ultra. E foi preciso o meu anfitrião desligar o som para me soltar do efeito encantatório da voz de Patrícia Barber, e me lembrar que estávamos ali para tratar de assuntos sérios e não para ouvir música. Por exemplo, para tratar da vinda de Patricia Barber a Portugal. Como se ela já não estivesse ali connosco...

Distribuidor: Imacústica

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