Sabem da paixão que tenho pelo Tivoli Audio One, o rádio monofónico analógico por excelência. Considerei-o mesmo um dos quatro melhores produtos que ouvi em 2002: «O Tivoli Audio Model One, a obra póstuma de Henry Kloss, é um rádio do tempo da outra senhora com tecnologia do século XXI e um preço do antigamente». O Tivoli tem todos os deliciosos defeitos dos rádios analógicos: sintonia manual, sopro irritante entre estações, etc. E no entanto, que maravilha de som: «o que me surpreendeu mais foi a sensualidade, presença e doçura da voz das locutoras (vozes roliças como madonas renascentistas), e a carga emocional, tanto no discurso como na música (ah, os pianos!), que o altifalante único transmite ao ouvinte».
Foi neste mesmo rádio, que oiço nas horas vagas, vagamente distraído, que uma locutora da RDP2 me anunciou que a DAB tem: pureza de som, qualidade CD, ausência de ruído, etc. A DAB é que é , o FM já era.
Resolvi apostar no futuro e compará-lo com o passado ainda presente. Tal como no boxe, convém que os contendores tenham peso igual e pertençam à mesma categoria. Assim, escolhi como adversário do Tivoli One o Pure Evoke One. São como duas gotas de água. Até na caixinha de madeira que os reveste, que tanto me encantou: «O Tivoli One é uma adorável caixinha de madeira igual às que o meu avô, que era carpinteiro, construía com paciência de santo, enquanto assobiava baixinho modinhas do tempo dele, com os óculos grossos caídos sobre a ponta do nariz. Ainda hoje sinto o cheiro a resina das aparas».
O Evoke One sempre me pareceu uma «evocação» descarada do Tivoli One. Mas as semelhanças acabam aqui.
O Tivoli One é um sintonizador FM (o AM só lá está por «descargo» de consciência), o Evoke One é um sintonizador DAB. Ambos em exclusividade de funções. O que temos aqui é um «remake» de um velho filme: «LP vs CD». Antes de prosseguirmos, deixem-me clarificar a minha posição. Abandonei o LP por dever de ofício: é muito mais fácil testar equipamentos com CD. Mas isso nunca me impediu de ter consciência da superioridade sónica intrínseca do LP. Por enquanto, resisto contudo a trocar a FM pela DAB. E não é só por apenas meia-dúzia de estações terem emissões digitais. A apregoada «qualidade CD» está, de facto, mais próxima do MP3.
No LP a música é representada pelo tempo de actuação da bailarina que evolui em pontas de diamante sobre a superfície ondulante do disco ao ritmo de 33 rpm, no espaço limitado pelo raio de acção do braço. No CD, tal como nos relógios digitais, o tempo musical é apenas uma representação numérica. Nos relógios analógicos, tal como nos gira-discos, é o espaço percorrido pelos ponteiros que determina o tempo. Ao determinar o tempo musical em função do espaço, o gira-discos tornou-se, paradoxalmente, um objecto de arte intemporal».
Esta é também a primeira e mais óbvia vantagem do Tivoli: a intemporalidade do design e o (des)prazer físico da sintonia manual. «Tocar é compreender», escreveu Barthes. A segunda é o... tempo. Refiro-me ao tempo musical: o som tem uma coerência rítmica e uma lógica interna que compensa o ruído inerente à transmissão por modulação de frequência. Com a DAB, a rádio viu-se livre do ruído. Do ruído e da emoção, como a ama distraída que deitou o bebé fora com a água suja do banho. As comparações que pude estabelecer com as emissões da Antena 1, 2 e 3 não deixam margem para dúvidas: o Tivoli One fala-nos ao coração, o Evoke à razão. E sem aparente razão: sei por experiência radiofónica própria (Audiofilia Aguda, na saudosa XFM) que o sinal é digitalizado e comprimido antes de ser emitido, pelo que o FM da nossa rádio não é geneticamente puro. Talvez a diferença afinal esteja na excelência do altifalante e respectiva caixa de ressonância (reflex) do Tivoli: «Quando o sinal é de qualidade, o som resultante é doce, cheio, natural, com as vozes masculinas a soarem encorpadas no limite do «dó de peito».
A sintonia do Evoke One tem a perfeição automática do digital: silenciosamente perfeita. Tão perfeita, aliás, que eu não hesitaria em recomendá-lo como o «rádio» da nova geração. «And yet...», diria Shakespeare. Ou talvez seja este meu apego atávico ao passado. O som é sólido, seguro, assepticamente limpo das adjacências da modulação, mas é mecânico e «bidimensional», o que pode parecer uma contradição positiva tratando-se de um rádio monofónico (pode ligá-lo por meio de cabo próprio ao seu amplificador estéreo). Para mim o som do Evoke está no limite da «dor de peito». Porque me dói admitir que a DAB é o futuro. Mas é. Como o foi o CD. O LP, esse, continua vestido de luto pela música, como um viúvo inconsolável que se recusa a admitir que a vida continua, enquanto jovens DAB frívolas se divertem sem respeito pela tradição. Serão elas as futuras meninas da rádio. Porque a tradição já não é o que era - agora é digital. Por decreto.Distribuidor: Esotérico
Foi neste mesmo rádio, que oiço nas horas vagas, vagamente distraído, que uma locutora da RDP2 me anunciou que a DAB tem: pureza de som, qualidade CD, ausência de ruído, etc. A DAB é que é , o FM já era.
Resolvi apostar no futuro e compará-lo com o passado ainda presente. Tal como no boxe, convém que os contendores tenham peso igual e pertençam à mesma categoria. Assim, escolhi como adversário do Tivoli One o Pure Evoke One. São como duas gotas de água. Até na caixinha de madeira que os reveste, que tanto me encantou: «O Tivoli One é uma adorável caixinha de madeira igual às que o meu avô, que era carpinteiro, construía com paciência de santo, enquanto assobiava baixinho modinhas do tempo dele, com os óculos grossos caídos sobre a ponta do nariz. Ainda hoje sinto o cheiro a resina das aparas».
O Evoke One sempre me pareceu uma «evocação» descarada do Tivoli One. Mas as semelhanças acabam aqui.
O Tivoli One é um sintonizador FM (o AM só lá está por «descargo» de consciência), o Evoke One é um sintonizador DAB. Ambos em exclusividade de funções. O que temos aqui é um «remake» de um velho filme: «LP vs CD». Antes de prosseguirmos, deixem-me clarificar a minha posição. Abandonei o LP por dever de ofício: é muito mais fácil testar equipamentos com CD. Mas isso nunca me impediu de ter consciência da superioridade sónica intrínseca do LP. Por enquanto, resisto contudo a trocar a FM pela DAB. E não é só por apenas meia-dúzia de estações terem emissões digitais. A apregoada «qualidade CD» está, de facto, mais próxima do MP3.
No LP a música é representada pelo tempo de actuação da bailarina que evolui em pontas de diamante sobre a superfície ondulante do disco ao ritmo de 33 rpm, no espaço limitado pelo raio de acção do braço. No CD, tal como nos relógios digitais, o tempo musical é apenas uma representação numérica. Nos relógios analógicos, tal como nos gira-discos, é o espaço percorrido pelos ponteiros que determina o tempo. Ao determinar o tempo musical em função do espaço, o gira-discos tornou-se, paradoxalmente, um objecto de arte intemporal».
Esta é também a primeira e mais óbvia vantagem do Tivoli: a intemporalidade do design e o (des)prazer físico da sintonia manual. «Tocar é compreender», escreveu Barthes. A segunda é o... tempo. Refiro-me ao tempo musical: o som tem uma coerência rítmica e uma lógica interna que compensa o ruído inerente à transmissão por modulação de frequência. Com a DAB, a rádio viu-se livre do ruído. Do ruído e da emoção, como a ama distraída que deitou o bebé fora com a água suja do banho. As comparações que pude estabelecer com as emissões da Antena 1, 2 e 3 não deixam margem para dúvidas: o Tivoli One fala-nos ao coração, o Evoke à razão. E sem aparente razão: sei por experiência radiofónica própria (Audiofilia Aguda, na saudosa XFM) que o sinal é digitalizado e comprimido antes de ser emitido, pelo que o FM da nossa rádio não é geneticamente puro. Talvez a diferença afinal esteja na excelência do altifalante e respectiva caixa de ressonância (reflex) do Tivoli: «Quando o sinal é de qualidade, o som resultante é doce, cheio, natural, com as vozes masculinas a soarem encorpadas no limite do «dó de peito».
A sintonia do Evoke One tem a perfeição automática do digital: silenciosamente perfeita. Tão perfeita, aliás, que eu não hesitaria em recomendá-lo como o «rádio» da nova geração. «And yet...», diria Shakespeare. Ou talvez seja este meu apego atávico ao passado. O som é sólido, seguro, assepticamente limpo das adjacências da modulação, mas é mecânico e «bidimensional», o que pode parecer uma contradição positiva tratando-se de um rádio monofónico (pode ligá-lo por meio de cabo próprio ao seu amplificador estéreo). Para mim o som do Evoke está no limite da «dor de peito». Porque me dói admitir que a DAB é o futuro. Mas é. Como o foi o CD. O LP, esse, continua vestido de luto pela música, como um viúvo inconsolável que se recusa a admitir que a vida continua, enquanto jovens DAB frívolas se divertem sem respeito pela tradição. Serão elas as futuras meninas da rádio. Porque a tradição já não é o que era - agora é digital. Por decreto.Distribuidor: Esotérico