As marcas independentes que fabricam equipamentos de áudio, dito «highend», são nichos de mercado, logo não têm estrutura financeira para desenvolver tecnologia própria. Assim, estabelecem acordos com as multinacionais e limitam-se a tentar melhorar aspectos específicos da obra alheia. Em nenhum outro campo como o da tecnologia digital isso assume contornos tão definidos.
Para conceber o seu leitor-SACD, a Krell teve de assumir compromissos com a Sony, confessou-me recentemente Dan D'Agostino; e a Theta, de Neil Sinclair, baseou os seus primeiros modelos de leitor-CD na tecnologia Pioneer.
A Musical Fidelity encostou-se à Philips nesta sua primeira investida no território do Super Audio CD. O Tri-Vista é alegadamente um tanque de guerra com um motor semelhante ao do Marantz SA1.
A partir de um mesmo núcleo digital, contudo, é possível obter diferenças (melhorias?) substanciais na qualidade do som com alterações drásticas na fonte de alimentação e na topologia e selecção de componentes dos andares de saída. Não é, pois, por acaso que alguns dos melhores leitores digitais do mundo têm a chancela de renomados fabricantes de amplificadores. Em algum ponto do circuito o sinal tem de ser convertido para analógico, e é aqui que eles estão como peixe na água. Mas as marcas têm o prestígio a defender e, ao pedirem por um aparelho o dobro (quando não mesmo o triplo) do que ele custa na versão original, têm de justificar o abuso com resultados objectivos. Há também aspectos particulares na área digital que são optimizados: selecção criteriosa dos conversores, redução de «jitter» (corresponde grosso modo à cintilação na imagem) e técnicas de «up-sampling» (elevar para o quádruplo a frequência de amostragem permite a utilização de filtragem menos agressiva), etc.
O Tri-Vista CD/SACD oferece fontes de alimentação reguladas por «choke» e separadas para cada secção, assim como circuitos de conversão independentes para CD e SACD. No andar de saída utiliza válvulas miniatura 5703 de especificação militar e longa duração. Tem ainda entrada e saída digital, pelo que pode funcionar como conversor e/ou transporte externo de outro equipamento complementar. A gaveta é uma obra-prima de design e robustez, mas não de ergonomia: não é fácil tirar o disco sem espetar o indicador no buraco.
O que resta saber é se o esforço (e o investimento) compensa, numa área em que a vertigem da obsolescência é a palavra de ordem: todos os novos leitores apresentados este ano em Las Vegas são multicanal e/ou «Universais» (SACD/DVD-Audio) com saída digital de alto débito iLink/Firewire. Ora, ao optar pelo «purismo» do estéreo (em vias de extinção?), o Musical Fidelity Tri-Vista expõe-se às críticas dos mais racionalistas. O seu desempenho teria de ser à partida superlativo para justificar, se não o investimento, no meu caso, pelo menos o tempo dispendido na análise.
O Tri-Vista (tal como o amplificador integrado com a mesma designação) é o culminar de uma trilogia que se iniciou com o «valvular» duo Nu-Vista e continuou, agora de novo numa concessão ao transístor, com o excelente duo A308, que foram aqui a seu tempo analisados. Todos eles são iguais no cuidado obsessivo posto na construção, todos eles são diferentes sob o ponto de vista acústico, como se Antony Michaelson tivesse consciência de que, na impossibilidade de se reproduzir a realidade acústica por meios electrónicos, não lhe restava outra alternativa senão «produzir» diferentes «sons» para diferentes sensibilidades auditivas, da mesma forma que a maravilhosa trilogia «Azul», «Branco» e «Vermelho», do realizador polaco Krzysztof Kieslowski, despertaram em mim diferentes sentimentos. Confesso que a bela Juliette Binoche imersa no azul liquido da tela é uma aparição recorrente na minha memória visual. Associo o A308 à cor azul, o Nu-Vista ao branco e o Tri-Vista ao vermelho. Neste contexto colorido, a minha actual referência, o conversor Chord DAC64, seria castanho, cor de «Chocolate». E quem viu o filme sabe que só há arte onde há amor e alma. E Juliette Binoche...
O Tri-Vista é tudo menos neutral: o seu carácter tonal é determinado pelas válvulas miniatura utilizadas no andar de saída. O som é redondo, contido, como se Antony Michaelson tivesse pretendido, perdoem-me o neologismo, «analogizá-lo» no limite. Dizer que o som está envolto num «casulo» seria uma injustiça. O termo «Cocoon» significa o mesmo em inglês, mas expressa melhor a sensação que pretendo transmitir, porque está associada a algo de mágico ligado a um imaginário colectivo: a ideia romântica de que é possível elevar o CD ao nível do SACD. Fica-me, contudo, a dúvida: é o CD aqui que se eleva (graças ao «upsampling»: 24bit/192kHz) ou o SACD que é levado a assumir uma postura «low-profile»?
O Tri-Vista soa (-me), não como um Philips (Marantz?), mas como o «pai-de-todos-os leitores-SACD», o Sony SCD-1, com o filtro de «50kHz» comutado. Talvez o «ruído» de alta frequência produzido pelo «noise-shaping», o único espinho na rosa perfumada do formato, fosse indigesto para a extensa banda passante das «valvulinhas», e Antony tivesse preferido eliminá-lo. Afinal, acima dos 50kHz só há «distorção térmica», como muito bem me explicou uma vez em Amsterdão mestre van den Hul.
O Tri-Vista tem os graves sólidos e autoritários que são exclusivos de peso-pesados como o SCD-1. Nota: num modelo musculado como este, os pézinhos luminosos só podem ser uma provocação (e mudam de cor!).
Os registos médios têm o gosto doce e viscoso do mosto quente que só a música reproduzida por válvulas nos deixa nos lábios. Em alguns aspectos, aproxima-se do Chord DAC64 (normalmente significa que estamos perante baixos níveis de «jitter»), sem contudo revelar a alacridade festiva nos registos agudos e o ataque dinâmico deste último, que lhe conferem uma aura singular de claridade, transparência, ritmo e grandiosidade cénica.
O Marantz DV8300, que testei recentemente, tem, em SACD-estéreo, um som mais «moderno», de contornos definidos e relações de espaço desenhadas a lápis e esquadro em papel milimétrico. O Pioneer DV-757Ai, que tenho em fase inicial de análise, tem, por oposição à masculinidade do Tri-Vista, a sensualidade acústica do feminino: chega a ser excitante aquela postura de donzela voluptuosa, de Lolita digital, cuja simples menção nos pode arrastar hoje para os abismos sórdidos da pedofilia.
O som do Tri-Vista tem os tons quentes dos vermelhos que se derramam no horizonte ao «pôr-do-sol» em África, uma experiência que nos marca para toda a vida, para o bem e para o mal: um oásis momentâneo de felicidade num longo deserto de recordações dolorosas.
Graças ao Musical Fidelity Tri-Vista CD/SACD, o estéreo resiste ainda com dignidade ao avanço inexorável do progresso multicanal. Tal como nós tentamos com apenas os dois ouvidos que Deus nos deu abarcar toda a complexa realidade sonora da natureza que nos rodeia.
Distribuidor: Sintonia Fina, Av. Gago Coutinho, lt. 2 - cave, telf. 21 464 79 30 [email protected]
Para conceber o seu leitor-SACD, a Krell teve de assumir compromissos com a Sony, confessou-me recentemente Dan D'Agostino; e a Theta, de Neil Sinclair, baseou os seus primeiros modelos de leitor-CD na tecnologia Pioneer.
A Musical Fidelity encostou-se à Philips nesta sua primeira investida no território do Super Audio CD. O Tri-Vista é alegadamente um tanque de guerra com um motor semelhante ao do Marantz SA1.
A partir de um mesmo núcleo digital, contudo, é possível obter diferenças (melhorias?) substanciais na qualidade do som com alterações drásticas na fonte de alimentação e na topologia e selecção de componentes dos andares de saída. Não é, pois, por acaso que alguns dos melhores leitores digitais do mundo têm a chancela de renomados fabricantes de amplificadores. Em algum ponto do circuito o sinal tem de ser convertido para analógico, e é aqui que eles estão como peixe na água. Mas as marcas têm o prestígio a defender e, ao pedirem por um aparelho o dobro (quando não mesmo o triplo) do que ele custa na versão original, têm de justificar o abuso com resultados objectivos. Há também aspectos particulares na área digital que são optimizados: selecção criteriosa dos conversores, redução de «jitter» (corresponde grosso modo à cintilação na imagem) e técnicas de «up-sampling» (elevar para o quádruplo a frequência de amostragem permite a utilização de filtragem menos agressiva), etc.
O Tri-Vista CD/SACD oferece fontes de alimentação reguladas por «choke» e separadas para cada secção, assim como circuitos de conversão independentes para CD e SACD. No andar de saída utiliza válvulas miniatura 5703 de especificação militar e longa duração. Tem ainda entrada e saída digital, pelo que pode funcionar como conversor e/ou transporte externo de outro equipamento complementar. A gaveta é uma obra-prima de design e robustez, mas não de ergonomia: não é fácil tirar o disco sem espetar o indicador no buraco.
O que resta saber é se o esforço (e o investimento) compensa, numa área em que a vertigem da obsolescência é a palavra de ordem: todos os novos leitores apresentados este ano em Las Vegas são multicanal e/ou «Universais» (SACD/DVD-Audio) com saída digital de alto débito iLink/Firewire. Ora, ao optar pelo «purismo» do estéreo (em vias de extinção?), o Musical Fidelity Tri-Vista expõe-se às críticas dos mais racionalistas. O seu desempenho teria de ser à partida superlativo para justificar, se não o investimento, no meu caso, pelo menos o tempo dispendido na análise.
O Tri-Vista (tal como o amplificador integrado com a mesma designação) é o culminar de uma trilogia que se iniciou com o «valvular» duo Nu-Vista e continuou, agora de novo numa concessão ao transístor, com o excelente duo A308, que foram aqui a seu tempo analisados. Todos eles são iguais no cuidado obsessivo posto na construção, todos eles são diferentes sob o ponto de vista acústico, como se Antony Michaelson tivesse consciência de que, na impossibilidade de se reproduzir a realidade acústica por meios electrónicos, não lhe restava outra alternativa senão «produzir» diferentes «sons» para diferentes sensibilidades auditivas, da mesma forma que a maravilhosa trilogia «Azul», «Branco» e «Vermelho», do realizador polaco Krzysztof Kieslowski, despertaram em mim diferentes sentimentos. Confesso que a bela Juliette Binoche imersa no azul liquido da tela é uma aparição recorrente na minha memória visual. Associo o A308 à cor azul, o Nu-Vista ao branco e o Tri-Vista ao vermelho. Neste contexto colorido, a minha actual referência, o conversor Chord DAC64, seria castanho, cor de «Chocolate». E quem viu o filme sabe que só há arte onde há amor e alma. E Juliette Binoche...
O Tri-Vista é tudo menos neutral: o seu carácter tonal é determinado pelas válvulas miniatura utilizadas no andar de saída. O som é redondo, contido, como se Antony Michaelson tivesse pretendido, perdoem-me o neologismo, «analogizá-lo» no limite. Dizer que o som está envolto num «casulo» seria uma injustiça. O termo «Cocoon» significa o mesmo em inglês, mas expressa melhor a sensação que pretendo transmitir, porque está associada a algo de mágico ligado a um imaginário colectivo: a ideia romântica de que é possível elevar o CD ao nível do SACD. Fica-me, contudo, a dúvida: é o CD aqui que se eleva (graças ao «upsampling»: 24bit/192kHz) ou o SACD que é levado a assumir uma postura «low-profile»?
O Tri-Vista soa (-me), não como um Philips (Marantz?), mas como o «pai-de-todos-os leitores-SACD», o Sony SCD-1, com o filtro de «50kHz» comutado. Talvez o «ruído» de alta frequência produzido pelo «noise-shaping», o único espinho na rosa perfumada do formato, fosse indigesto para a extensa banda passante das «valvulinhas», e Antony tivesse preferido eliminá-lo. Afinal, acima dos 50kHz só há «distorção térmica», como muito bem me explicou uma vez em Amsterdão mestre van den Hul.
O Tri-Vista tem os graves sólidos e autoritários que são exclusivos de peso-pesados como o SCD-1. Nota: num modelo musculado como este, os pézinhos luminosos só podem ser uma provocação (e mudam de cor!).
Os registos médios têm o gosto doce e viscoso do mosto quente que só a música reproduzida por válvulas nos deixa nos lábios. Em alguns aspectos, aproxima-se do Chord DAC64 (normalmente significa que estamos perante baixos níveis de «jitter»), sem contudo revelar a alacridade festiva nos registos agudos e o ataque dinâmico deste último, que lhe conferem uma aura singular de claridade, transparência, ritmo e grandiosidade cénica.
O Marantz DV8300, que testei recentemente, tem, em SACD-estéreo, um som mais «moderno», de contornos definidos e relações de espaço desenhadas a lápis e esquadro em papel milimétrico. O Pioneer DV-757Ai, que tenho em fase inicial de análise, tem, por oposição à masculinidade do Tri-Vista, a sensualidade acústica do feminino: chega a ser excitante aquela postura de donzela voluptuosa, de Lolita digital, cuja simples menção nos pode arrastar hoje para os abismos sórdidos da pedofilia.
O som do Tri-Vista tem os tons quentes dos vermelhos que se derramam no horizonte ao «pôr-do-sol» em África, uma experiência que nos marca para toda a vida, para o bem e para o mal: um oásis momentâneo de felicidade num longo deserto de recordações dolorosas.
Graças ao Musical Fidelity Tri-Vista CD/SACD, o estéreo resiste ainda com dignidade ao avanço inexorável do progresso multicanal. Tal como nós tentamos com apenas os dois ouvidos que Deus nos deu abarcar toda a complexa realidade sonora da natureza que nos rodeia.
Distribuidor: Sintonia Fina, Av. Gago Coutinho, lt. 2 - cave, telf. 21 464 79 30 [email protected]