Em Las Vegas, Dave Wilson serviu-se da voz de Rickie Lee Jones para demonstrar o Watchdog, sólido alicerce de um sistema composto por colunas Wilson Cub. Deixou-me com pele de galinha. Um mês depois, Rickie vem a Lisboa cantar na Aula Magna. Deixou-me com urticária. Fria e distante perante um público caloroso que a ouviu em respeitoso silêncio. O silêncio era quase total entre faixas: ouviu-se o concerto como se ouve um disco - até à última nota. Aplausos só no fim, como num jogo de ténis.Por pouco não nos deixava sem o tradicional «encore». Fingiu não ouvir o pedido para cantar Chuck E.'s in Love. E não acedeu ao meu sonoro pedido para que cantasse «Easy Money», a história irónica de duas «hookers» que atiram a moeda ao ar para decidir quem vai sacar o dinheiro a um pretenso tanso que afinal era mais esperto do que elas: «Dessa já não me lembro...». Eu recordo-lhe, começa assim: «There was a Joe leanin' on the back door, a couple Jills with their eyes on a couple bills…»
«Easy Money» foi durante anos a faixa mais utilizada em demonstrações audiófilas: um bom teste da resolução fina dos sistemas de som. Cheguei a casa e fui ouvi-la no meu sistema Krell/Wilson System 6/Transparent Audio. As Wilson são talvez as únicas colunas de som do mundo com dimensões domesticamente aceitáveis capazes de reproduzir a dinâmica e os níveis de pressão sonora de um concerto ao vivo. E o espaço. E as nuances. Depois de anos de convívio íntimo com uma italiana quente e sensual: as Sonus Faber Extrema, as Wilson são americanas e, tal como Rickie Lee Jones, podem soar algo «impessoais».
A voz de Rickie não mudou muito. Os cabelos continuam longos e loiros como na juventude; a atitude interpretativa mantém aquele «não sei quê» de provocação infantil; só o corpo alargou com a aproximação da menopausa: deve ter hoje 46 anos. A idade trouxe-lhe uma outra perspectiva do mundo: a menina outrora rebelde, que fugiu de casa dos pais aos 15 anos num carro roubado, e foi sucessivamente expulsa de vários colégios por mau comportamento, cantou uma «Oração» acompanhada à guitarra eléctrica e uma canção da autoria do pai Richard Jones: «Que me deu o nome, pensei que gostassem de saber também». Foi a única nota de humor. Rickie falou pouco, dispensou um ou outro sorriso casto e quase envergonhado e praticamente não se dirigiu ao público: obrigada, estou orgulhosa de poder cantar aqui pela primeira vez e, no final, mantenham a fé. Nada de intimidades. O concerto foi um ritual litúrgico no qual o público participou apenas passivamente: estavam ali para ouvir a sacerdotisa. Se houve um elo de ligação foi espiritual e não físico: nunca incentivou o público a acompanhá-la, mantendo uma atitude de serena superioridade. A mulher que se deixou fotografar em 1979 para a capa do seu disco de estreia a fumar uma cigarrilha (charro?) exigiu mesmo uma cláusula de cancelamento do espectáculo se alguém fumasse na sala.
Moral da história: os pais não devem desesperar com a rebeldia dos filhos - eles mudam com a idade!...
As velas acesas sobre o piano e as «orações» indiciam uma religiosidade tardia. Quando o trio de velas vermelhas de um dos candelabros improvisados se derreteu, perdendo a putativa simbologia esotérica, o concerto acabou. Coincidência?
Rickie poderá ter encontrado a paz interior, o seu relacionamento com o mundo exterior - os outros, nós, o público - é que precisa ainda de alguma reflexão. A produção do espectáculo foi de um pobreza franciscana, estática como uma fotografia antiga de família com os músicos vestidos para um ensaio de garagem: baterista de casaco de treino com carapuço, contrabaixista em t-shirt e guitarrista de boné enfiado na cabeça, óculos escuros e harmónica no bolso. Ela de saia de lã comprida, fralda de fora e um colete sem jeito a disfarçar as formas dos anos; guitarra semi-acústica ao peito, com deliciosa amplificação a válvulas (o sopro era audível na excelente acústica da sala mas a luxuriante riqueza harmónica valeu bem o inconveniente); piano (muito bem captado o som do Steinway com os graves a fazerem vibrar também as cordas dos sentidos) e voz. Ou melhor, vozes: o microfone principal enfatizava a dureza já de si estridente dos registos médio-altos e a sibilância da voz fruto da proximidade dos lábios (se Rickie fosse uma coluna de som, cortava-lhe 2dB nos médios e 1dB nos agudos); o segundo microfone soou mais equilibrado, a voz de Rickie ganhou corpo e calor, humanizou-se (pode soar por vezes desagradavelmente mecânica) e algumas das canções que interpretou, acompanhando-se ao piano, foram os momentos altos do concerto, aproveitando então para exibir os seus dotes vocais com uma surpreendente paleta tonal: de graves sacados do estômago, com as narinas a servir de pórtico reflex, até agudos estridentes de corda vocal esticada à beira da ruptura. Um «I love you Rickie», gritado cá de cima, mereceu-lhe na ocasião o sorriso condescendente de quem sabe que agradou.
Rickie tem contudo uma estranha forma de cantar: coloca toda a energia da voz na sílaba tónica como se pretendesse concentrar o significado da frase numa só nota - uma autêntica explosão dinâmica, quase como a dor gritada das nossas fadistas - e termina invariavelmente in soto voce, num sussurro nasalado que exige elevada resolução e capacidade de reprodução microdinâmica do sistema de som para o discurso não perder inteligibilidade. O PA utilizado na Aula Magna não era nada mau (terei visto tweeters de fita num par de colunas?). Mesmo assim perdi algumas palavras, que não os sons correspondentes. Numa vocalização a lembrar a espaços o estilo da nossa Maria João, a fonética sobrepunha-se à morfologia, já que a sintaxe da sua lírica é errática. Foi a mensagem que deixou de ter importância ou a voz que perdeu a frescura? Neste particular, as Wilson dão cartas, e no disco até os pensamentos mais íntimos de Rickie soam como um livro acústico aberto.
Ao nível macrodinâmico, o PA portou-se bem, com impacto q.b. da secção rítmica, mantendo a complexa linha do contrabaixo clara e fácil de seguir e o ataque da tarola e das cordas da guitarra propulsionada por um amplificador a válvulas de uma transparência verdadeiramente audiófila (uau!). Dir-se-ia dos sons da guitarra o que se diz do vinho de qualidade: tinham um admirável bouquet harmónico! As Wilson não fariam melhor mesmo num contexto doméstico ideal.
Rickie ainda conseguiu ser freneticamente aplaudida no acto de desmontagem «jazzy» de alguns clássicos: em «On the street where you live», por exemplo, não deixou pedra sobre pedra. And yet, prefiro a versão de Holy Cole.
Rickie Lee Jones, o disco, irá continuar a ser um objecto de culto audiófilo e «Easy Money» a sua pedra de toque. A edição em Super Audio CD aguarda-se com ansiedade. Rickie Lee Jones, a artista, continuará a ser cantora de culto. Sinto-me frustrado por não ter cantado «Easy Money» na sua primeira visita a Portugal.
Vou acender uma vela e ouvir o disco pela milésima vez. Até que a voz lhe doa - ou a vela se apague: «There was a Joe leanin' on the back door, a couple Jills with their eyes on a couple bills…»
«Easy Money» foi durante anos a faixa mais utilizada em demonstrações audiófilas: um bom teste da resolução fina dos sistemas de som. Cheguei a casa e fui ouvi-la no meu sistema Krell/Wilson System 6/Transparent Audio. As Wilson são talvez as únicas colunas de som do mundo com dimensões domesticamente aceitáveis capazes de reproduzir a dinâmica e os níveis de pressão sonora de um concerto ao vivo. E o espaço. E as nuances. Depois de anos de convívio íntimo com uma italiana quente e sensual: as Sonus Faber Extrema, as Wilson são americanas e, tal como Rickie Lee Jones, podem soar algo «impessoais».
A voz de Rickie não mudou muito. Os cabelos continuam longos e loiros como na juventude; a atitude interpretativa mantém aquele «não sei quê» de provocação infantil; só o corpo alargou com a aproximação da menopausa: deve ter hoje 46 anos. A idade trouxe-lhe uma outra perspectiva do mundo: a menina outrora rebelde, que fugiu de casa dos pais aos 15 anos num carro roubado, e foi sucessivamente expulsa de vários colégios por mau comportamento, cantou uma «Oração» acompanhada à guitarra eléctrica e uma canção da autoria do pai Richard Jones: «Que me deu o nome, pensei que gostassem de saber também». Foi a única nota de humor. Rickie falou pouco, dispensou um ou outro sorriso casto e quase envergonhado e praticamente não se dirigiu ao público: obrigada, estou orgulhosa de poder cantar aqui pela primeira vez e, no final, mantenham a fé. Nada de intimidades. O concerto foi um ritual litúrgico no qual o público participou apenas passivamente: estavam ali para ouvir a sacerdotisa. Se houve um elo de ligação foi espiritual e não físico: nunca incentivou o público a acompanhá-la, mantendo uma atitude de serena superioridade. A mulher que se deixou fotografar em 1979 para a capa do seu disco de estreia a fumar uma cigarrilha (charro?) exigiu mesmo uma cláusula de cancelamento do espectáculo se alguém fumasse na sala.
Moral da história: os pais não devem desesperar com a rebeldia dos filhos - eles mudam com a idade!...
As velas acesas sobre o piano e as «orações» indiciam uma religiosidade tardia. Quando o trio de velas vermelhas de um dos candelabros improvisados se derreteu, perdendo a putativa simbologia esotérica, o concerto acabou. Coincidência?
Rickie poderá ter encontrado a paz interior, o seu relacionamento com o mundo exterior - os outros, nós, o público - é que precisa ainda de alguma reflexão. A produção do espectáculo foi de um pobreza franciscana, estática como uma fotografia antiga de família com os músicos vestidos para um ensaio de garagem: baterista de casaco de treino com carapuço, contrabaixista em t-shirt e guitarrista de boné enfiado na cabeça, óculos escuros e harmónica no bolso. Ela de saia de lã comprida, fralda de fora e um colete sem jeito a disfarçar as formas dos anos; guitarra semi-acústica ao peito, com deliciosa amplificação a válvulas (o sopro era audível na excelente acústica da sala mas a luxuriante riqueza harmónica valeu bem o inconveniente); piano (muito bem captado o som do Steinway com os graves a fazerem vibrar também as cordas dos sentidos) e voz. Ou melhor, vozes: o microfone principal enfatizava a dureza já de si estridente dos registos médio-altos e a sibilância da voz fruto da proximidade dos lábios (se Rickie fosse uma coluna de som, cortava-lhe 2dB nos médios e 1dB nos agudos); o segundo microfone soou mais equilibrado, a voz de Rickie ganhou corpo e calor, humanizou-se (pode soar por vezes desagradavelmente mecânica) e algumas das canções que interpretou, acompanhando-se ao piano, foram os momentos altos do concerto, aproveitando então para exibir os seus dotes vocais com uma surpreendente paleta tonal: de graves sacados do estômago, com as narinas a servir de pórtico reflex, até agudos estridentes de corda vocal esticada à beira da ruptura. Um «I love you Rickie», gritado cá de cima, mereceu-lhe na ocasião o sorriso condescendente de quem sabe que agradou.
Rickie tem contudo uma estranha forma de cantar: coloca toda a energia da voz na sílaba tónica como se pretendesse concentrar o significado da frase numa só nota - uma autêntica explosão dinâmica, quase como a dor gritada das nossas fadistas - e termina invariavelmente in soto voce, num sussurro nasalado que exige elevada resolução e capacidade de reprodução microdinâmica do sistema de som para o discurso não perder inteligibilidade. O PA utilizado na Aula Magna não era nada mau (terei visto tweeters de fita num par de colunas?). Mesmo assim perdi algumas palavras, que não os sons correspondentes. Numa vocalização a lembrar a espaços o estilo da nossa Maria João, a fonética sobrepunha-se à morfologia, já que a sintaxe da sua lírica é errática. Foi a mensagem que deixou de ter importância ou a voz que perdeu a frescura? Neste particular, as Wilson dão cartas, e no disco até os pensamentos mais íntimos de Rickie soam como um livro acústico aberto.
Ao nível macrodinâmico, o PA portou-se bem, com impacto q.b. da secção rítmica, mantendo a complexa linha do contrabaixo clara e fácil de seguir e o ataque da tarola e das cordas da guitarra propulsionada por um amplificador a válvulas de uma transparência verdadeiramente audiófila (uau!). Dir-se-ia dos sons da guitarra o que se diz do vinho de qualidade: tinham um admirável bouquet harmónico! As Wilson não fariam melhor mesmo num contexto doméstico ideal.
Rickie ainda conseguiu ser freneticamente aplaudida no acto de desmontagem «jazzy» de alguns clássicos: em «On the street where you live», por exemplo, não deixou pedra sobre pedra. And yet, prefiro a versão de Holy Cole.
Rickie Lee Jones, o disco, irá continuar a ser um objecto de culto audiófilo e «Easy Money» a sua pedra de toque. A edição em Super Audio CD aguarda-se com ansiedade. Rickie Lee Jones, a artista, continuará a ser cantora de culto. Sinto-me frustrado por não ter cantado «Easy Money» na sua primeira visita a Portugal.
Vou acender uma vela e ouvir o disco pela milésima vez. Até que a voz lhe doa - ou a vela se apague: «There was a Joe leanin' on the back door, a couple Jills with their eyes on a couple bills…»