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2004

Um Lp Chamado Desejo



Na Almirante Reis, vou ao Ramiro - quando o orçamento o permite: o marisco sabe a mar. E vou à Interlux onde a música sabe a som de qualidade. Em ambos os casos, o patrão está na loja e gosta do que faz e dos clientes, que são recebidos como amigos de longa data. Vou tentar não prolongar demasiado a metáfora gastronómica, ou o leitor vai precisar de uma «rennie» se já antes leu o DNA...


Carlos Henriques: «Não deixar cair o Lp e o estéreo do passado é também uma forma de garantir o futuro...»


Afinal não sou o único louco que ousa nadar contra a corrente ao propor aos leitores som estéreo puro, quando à minha volta todos parecem já ter aderido ao DVD e ao «surround», passe a redundância. O Carlos Henriques (que não é meu familiar) recebeu-me no adorável sotão da Interlux com um menu muito especial: LP servidos num belissimo gira-discos Musical Fidelity M1, o único existente em Portugal. É preciso coragem para continuar a apostar em som «ao natural» quando por todo o lado nos servem música condimentada.


Vista do sotão audiófilo da Interlux


As colunas e a amplificação estiveram a cargo da Accustic Arts, uma marca alemã que faz jus ao nome. Ao arrepio da tradição germanófila, não sofre da dureza congénita que afecta a indústria áudio alemã, com as poucas excepções que se conhecem: Burmester, por exemplo, de que a Accustic Arts é digna herdeira em termos estéticos - que não no preço, felizmente...


Musical Fidelity M1


O MF M1 é um gira-discos de rara beleza, descendente da rutilante transparência dos Transrotor (há quem os deixe a girar mesmo sem disco e fique a olhá-los hipnotizado) que eram as vedetas do Hotel Kempinski, por altura da realização do «HighEnd Show» de Frankfurt, e é a última loucura do desconcertante Antony Michaelson, que, depois de produzir alguns dos melhores leitores-CD da actualidade, como é o caso do A308 cr (24-bit «upsampling»), que serviu de termo de comparação auditiva, achou que era altura de prestar a sua homenagem a um formato que teima em resistir à morte anunciada e vai ganhando tantos mais adeptos quanto mais indefinida for a posição da indústria áudio face à guerra dos formatos de alta resolução. Ao mesmo tempo, Antony, sendo um «bife» de gema, homenageou também o malogrado compatriota John Michell, recentemente falecido: os pesos para aumento da inércia do prato são obviamente inspirados no Michell GyroDec.


A vantagem deste tipo de audições reside no facto de o leitor interessado poder repeti-las com hora marcada (telef. 218 850 955), no mesmo local e nas mesmas condições, com os seus próprios discos, enquanto a hipótese de eu o convidar a vir a minha casa é, no mínimo, remota. Por outro lado, sempre evito, se não a maçada, porque eu corro por gosto, pelo menos o trabalho complexo da montagem e afinação.


Braço SME M2+Lyra Helikon


Aqui convém frisar que no M1 todas as peças encaixam na perfeição e já vem de origem com um braço SME M2, concebido especificamente para este gira-discos. É só juntar uma célula (vulgo «agulha») a gosto, que no caso vertente era uma Lyra Helikon (não está incluída no preço de 4 500 euros!).


Zukerman abriu as hostilidades com as «4 Estações» à frente da «English Chamber Orchestra». Um LP usado comprado em Londres numa venda de rua, confessou-me o Carlos: «É a primeira vez que o oiço...». Trata-se de uma gravação CBS dos anos setenta, uma época em que os microfones com prévios de estado sólido faziam já sentir o seu fatídico domínio; o palco é apertado e falta «ar» aos músicos. Se não fosse o timbre das cordas, diria que se tratava de um CD.


Jacintha surgiu no palco, não a nossa Jacinta, mas a japonesa com h, que é um deusa para os audiófilos de todo o mundo, e entrou na liça com «Here's to Ben». Ah!, eis como um registo feito com o equipamento certo e as pessoas certas nos lugares certos pode fazer toda a diferença do mundo: um som cheio, carnudo, sensual, tridimensional, natural. Se ao menos a voz de Billie Holliday tivesse um dia sido registada assim...


Carlos posa estrategicamente entre as colunas e belíssima mesa da Accustic Arts: uma agradável surpresa


Seguiu-se uma curiosa comparação entre a versão LP em vinilo de 180 gramas e o CD de «Hope», de Hugh Masekella. Prefiro ouvi-lo em minha casa (mesmo em CD!): o som é ainda mais dramático - mas isso tem o seu preço. Se nunca ouviu «Stimela» sobre o trabalho escravo dos imigrantes africanos nas minas da África do Sul, tem uma grave lacuna na sua cultura musical. Deve ouvir-se alto para melhor sentir a raiva e o sofrimento.


Aqui o leitor-CD A 308 portou-se muito bem, o que não me surpreendeu (nem aos leitores que leram o meu teste). É um facto que os níveis não estavam aferidos e que o CD soava «mais alto», daí talvez a «maior» presença. O LP ouve-se, contudo, durante mais tempo sem cansar. De uma maneira geral, o som do CD endurece à medida que «sobe» enquanto o do LP se limita a ganhar corpo e estatura.


Qual a principal diferença entre o som do LP e do CD? Compare as fotos do DNA e as do DN Mais. No DNA as fotos são reproduzidas com mais resolução e as cores são mais saturadas. Por outro lado, no DNA as fotos são reproduzidas na integra, enquanto no DN Mais optam por vezes por recortá-las. As fotos recortadas têm, sem dúvida, mais impacto gráfico. Por outro lado, perde-se o contexto. Embora o CD tenha evoluído espectacularmente nos últimos cinco anos, o LP oferece-nos um som menos «recortado» mas mais rico em informação sobre o contexto acústico que o envolve (e nos envolve).


À despedida «Nice Work», de Carol Kidd, um LP Linn (o CD correspondente é tão mau: oiçam-se as sibilantes, por exemplo, que a Linn só pode ter feito de propósito para continuar a vender os seus gira-discos LP12).


E foi preciso arrancarem-me da cadeira. «Nice work, indeed, Antony...»


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