João Rodrigues e as Quad
Há pessoas que me suscitam memórias do passado. Habituei-me ao longo dos anos a ter pelo João Rodrigues não apenas simpatia mas também empatia por afinidade audiófila. O João trabalhou durante muitos anos na Valentim de Carvalho, um dos meus “poisos” favoritos dos voos rasantes da juventude. Quando a “Valentim” renasceu das cinzas escrevi na revista Imasom um artigo de dolorosa homenagem, intitulado “Fénix Renascida”.
Na minha memória hei-de associar sempre o João às Quad electrostáticas. Ainda me lembro de o ver elucidar, com um sorriso largo no rosto, potenciais clientes do que eu considerava ser naquela época a porta do paraíso musical. Ficava para ali toda a tarde, bebendo palavras, assimilando conceitos, absorvendo sons, num conjunto de experiências que moldaram aquilo que sou hoje: um crítico de áudio amador, no sentido mais lato do termo.
As Quad ELS63, a obra prima de Peter Walker, que ainda hoje são as únicas colunas de som do mundo capazes de reproduzir uma onda quadrada de 10kHz, de tal forma que captada por um microfone se continua a assemelhar num osciloscópio à onda original, eram na altura em Portugal o máximo a que se podia aspirar. Hoje penso de maneira diferente e considero-as limitadas em alguns aspectos.
Erros seus, má fortuna, amor ardente, a Quad, um dos ícones da indústria britânica, dos anos 50-70, foi cair em mãos orientais - teias que a Bolsa tece! - que viram no prestígio do nome uma boa hipótese de investimento. A Arte é um negócio que o negócio da Arte destrói sem remorso. As Quad para mim morreram quando Stan Curtis tentou ultrapassar os limites que Peter Walker lhes impôs à nascença, tal como os deuses do Olimpo impuseram limites aos homens. Ai de quem ouse furtar-se à condição de humano roubando o fogo sagrado como Prometeu!...
A imagem estéreo das Quad tinha uma precisão holográfica, que não cessava então de me deslumbrar. Hoje o João vende outro tipo de painéis, os de plasma e LCD da Fujitsu, com milhões de cores que não necessitam de tanta imaginação para se verem. O sorriso e a simpatia são os mesmos de sempre, só o discurso mudou.
João Cancela e as BW DM70 Continental
Há igualmente coisas que me suscitam memórias do passado. Houve algo que despertou a minha atenção na sala da ArtAudio; algo que terá porventura passado despercebido a muitos dos visitantes do Audioshow 2005, mais interessados em ouvir a voz com brilho de diamante das BW 802D. Em exposição estática, estava a clássica BW DM70 Continental, um modelo híbrido muito raro, com painel electrostático e caixa de graves convencional, no qual me inspirei para construir umas colunas também híbridas com base em painéis Schackman montados sobre uma linha de transmissão Bailey com um altifalante KEF. E se aquilo tocava!...
A estas BW nunca as ouvi eu cantar, vi-as apenas pela primeira vez, há muitos anos, mudas e quedas, em casa de João Cancela, que, honra lhe seja feita, foi um dos responsáveis pelo meu destino audiófilo, quando me vendeu a preço de amigo (?) um amplificador Threshold, com circuito Stasis, concebido pelo génio de Nelson Pass, depois de o ouvir alimentar um par de colunas Étude. É curioso como a simples visão de um objecto pode sugerir um caleidoscópio de memórias auditivas que lhe estão associadas. Recordei-me das faixas de quase todos os LP da Mobile Fidelity e da Sheffield que ouvimos naquele dia, como o cão de Pavlov que salivava ao som da campainha...
Delfim Yanez e a Advance Audio
Há muito tempo que não via o Delfim tão entusiasmado. Conheço-o há mais de 20 anos, desde a época áurea da Delmax original, uma espécie de bazar onde se podiam comprar equipamentos hifi e VCRs em conta. Delfim sempre foi um homem pragmático, um comerciante puro e duro, no bom sentido do termo. Mas, lá bem no fundo, é um audiófilo de coração mole que, por vezes, tem razões que a razão desconhece e deixa-se tentar pela sereia do highend. Os Sonic Frontiers, Pass, Pathos e Esoteric foram encomendados num desses abençoados momentos de 'fraqueza', para regozijo de críticos e 'tyre kickers', uma expressão de Ken Kessler para designar os que, desejando o que não podem comprar, vão de mãos nos bolsos vazios aos stands de carros topo de gama (leia-se lojas de hifi) para dar palpites e pontapés nos pneus só para ver se estão cheios e regressam a penates...
Hoje a Delaudio representa marcas de grande consumo, como a Hitachi, cujos plasmas e LCD tiram o sono à concorrência, e vende colunas Monitor Audio by the truck load. Mas o bichinho dos dois canais continuou lá dentro a roer. Talvez por isso, o Delfim não resistiu na IFA, de Berlim, aos encantos da Advance Acoustic, uma marca francesa que aproveita a globalização para produzir a preços baixos na China, mantendo contudo o controlo de qualidade apertado, ao não permitir que os produtos sejam directamente enviados da fábrica para o revendedor sem passar pelo crivo dos testes técnicos e auditivos em França. Desta vez tinha encontrado o Graal: um produto que conciliava razão e emoção. E tão barato que promete o Céu aos consumidores e o inferno aos concorrentes. Que, como se sabe, está cheio de boas intenções. Só que desta vez parece cumprir-se a promessa. Daí o sorriso de Delfim. Nem os Pass, nem os Phatos o fizeram sorrir assim. Este é o tipo de objecto que lhe permite concretizar a sua filosofia de vida: vender qualidade a preço acessível.
Rui Borges e o seu gira-discos
Numa sala pequena, com poucas condições e muito menos meios que as vedetas do show, o Rui conseguiu obter uma maioria representativa de opiniões favoráveis dos participantes na iniciativa do Hificlube. Fundamentalmente, as pessoas afirmam ter-se sentido bem na sala da Delmax.
Terá sido por causa do seu gira-discos, que é uma extensão do si próprio? Da luz mágica das válvulas (e das velas) que convidavam ao ritual da partilha? Da forma como o casal Borges recebe os amigos e visitantes? Da música que o Rui escolhe para si próprio e os outros ouvem por tabela? Eu acho que é uma questão de 'kharma'. Quando o que fazemos com gosto, não é um negócio, é antes uma forma de estar na vida, arriscamo-nos a que aconteçam coisas bonitas com esta...
André Marques, a Onkyo e a Hifidelio
A renovação da 'espécie' é fundamental para evitar a extinção. É o que vai acontecer se os audiófilos não acompanharem a evolução tecnológica. Eu adoro válvulas e gira-discos mas não sou fundamentalista e raramente os utilizo no dia-a-dia. Sinto que tenho de manter um espírito aberto ao presente para garantir o futuro. Os equipamentos digitais são cada vez mais sofisticados e complexos e alguns fazem-se acompanhar de manuais que são autênticas teses de doutoramento. É preciso haver do outro lado quem saiba explicar de uma forma simples e competente 'para que serve', 'como se faz', quais as vantagens do iLink, HDMI, Wi-FI, NET-Tune, bases de dados, redes domésticas, etc.
O André, que conheci no Audioshow, é uma daquelas excepções que confirmam a regra de que os 'vendedores' não dominam aquilo que vendem (veja-se o email de Rogério Neiva em Opinião dos Leitores 4). O André não só revelou conhecimentos acima da média, explicou com visível entusiasmo quais as características inovadoras dos Onkyo. E soube responder na ponta da língua a todas as questões que lhe coloquei, mesmo as que continham 'rasteiras'. São mais pessoas como o André que fazem falta no nosso mercado.
Ou arriscamo-nos a cumprir a definição shakespeareana de vida: OUT, OUT brief candle (aqui pode ler-se válvula em vez de vela)! Life is but a walking shadow, a poor player that struts and frets his hour upon the stage and then is heard no more. ....
Há pessoas que me suscitam memórias do passado. Habituei-me ao longo dos anos a ter pelo João Rodrigues não apenas simpatia mas também empatia por afinidade audiófila. O João trabalhou durante muitos anos na Valentim de Carvalho, um dos meus “poisos” favoritos dos voos rasantes da juventude. Quando a “Valentim” renasceu das cinzas escrevi na revista Imasom um artigo de dolorosa homenagem, intitulado “Fénix Renascida”.
Na minha memória hei-de associar sempre o João às Quad electrostáticas. Ainda me lembro de o ver elucidar, com um sorriso largo no rosto, potenciais clientes do que eu considerava ser naquela época a porta do paraíso musical. Ficava para ali toda a tarde, bebendo palavras, assimilando conceitos, absorvendo sons, num conjunto de experiências que moldaram aquilo que sou hoje: um crítico de áudio amador, no sentido mais lato do termo.
As Quad ELS63, a obra prima de Peter Walker, que ainda hoje são as únicas colunas de som do mundo capazes de reproduzir uma onda quadrada de 10kHz, de tal forma que captada por um microfone se continua a assemelhar num osciloscópio à onda original, eram na altura em Portugal o máximo a que se podia aspirar. Hoje penso de maneira diferente e considero-as limitadas em alguns aspectos.
Erros seus, má fortuna, amor ardente, a Quad, um dos ícones da indústria britânica, dos anos 50-70, foi cair em mãos orientais - teias que a Bolsa tece! - que viram no prestígio do nome uma boa hipótese de investimento. A Arte é um negócio que o negócio da Arte destrói sem remorso. As Quad para mim morreram quando Stan Curtis tentou ultrapassar os limites que Peter Walker lhes impôs à nascença, tal como os deuses do Olimpo impuseram limites aos homens. Ai de quem ouse furtar-se à condição de humano roubando o fogo sagrado como Prometeu!...
A imagem estéreo das Quad tinha uma precisão holográfica, que não cessava então de me deslumbrar. Hoje o João vende outro tipo de painéis, os de plasma e LCD da Fujitsu, com milhões de cores que não necessitam de tanta imaginação para se verem. O sorriso e a simpatia são os mesmos de sempre, só o discurso mudou.
João Cancela e as BW DM70 Continental
Há igualmente coisas que me suscitam memórias do passado. Houve algo que despertou a minha atenção na sala da ArtAudio; algo que terá porventura passado despercebido a muitos dos visitantes do Audioshow 2005, mais interessados em ouvir a voz com brilho de diamante das BW 802D. Em exposição estática, estava a clássica BW DM70 Continental, um modelo híbrido muito raro, com painel electrostático e caixa de graves convencional, no qual me inspirei para construir umas colunas também híbridas com base em painéis Schackman montados sobre uma linha de transmissão Bailey com um altifalante KEF. E se aquilo tocava!...
A estas BW nunca as ouvi eu cantar, vi-as apenas pela primeira vez, há muitos anos, mudas e quedas, em casa de João Cancela, que, honra lhe seja feita, foi um dos responsáveis pelo meu destino audiófilo, quando me vendeu a preço de amigo (?) um amplificador Threshold, com circuito Stasis, concebido pelo génio de Nelson Pass, depois de o ouvir alimentar um par de colunas Étude. É curioso como a simples visão de um objecto pode sugerir um caleidoscópio de memórias auditivas que lhe estão associadas. Recordei-me das faixas de quase todos os LP da Mobile Fidelity e da Sheffield que ouvimos naquele dia, como o cão de Pavlov que salivava ao som da campainha...
Delfim Yanez e a Advance Audio
Há muito tempo que não via o Delfim tão entusiasmado. Conheço-o há mais de 20 anos, desde a época áurea da Delmax original, uma espécie de bazar onde se podiam comprar equipamentos hifi e VCRs em conta. Delfim sempre foi um homem pragmático, um comerciante puro e duro, no bom sentido do termo. Mas, lá bem no fundo, é um audiófilo de coração mole que, por vezes, tem razões que a razão desconhece e deixa-se tentar pela sereia do highend. Os Sonic Frontiers, Pass, Pathos e Esoteric foram encomendados num desses abençoados momentos de 'fraqueza', para regozijo de críticos e 'tyre kickers', uma expressão de Ken Kessler para designar os que, desejando o que não podem comprar, vão de mãos nos bolsos vazios aos stands de carros topo de gama (leia-se lojas de hifi) para dar palpites e pontapés nos pneus só para ver se estão cheios e regressam a penates...
Hoje a Delaudio representa marcas de grande consumo, como a Hitachi, cujos plasmas e LCD tiram o sono à concorrência, e vende colunas Monitor Audio by the truck load. Mas o bichinho dos dois canais continuou lá dentro a roer. Talvez por isso, o Delfim não resistiu na IFA, de Berlim, aos encantos da Advance Acoustic, uma marca francesa que aproveita a globalização para produzir a preços baixos na China, mantendo contudo o controlo de qualidade apertado, ao não permitir que os produtos sejam directamente enviados da fábrica para o revendedor sem passar pelo crivo dos testes técnicos e auditivos em França. Desta vez tinha encontrado o Graal: um produto que conciliava razão e emoção. E tão barato que promete o Céu aos consumidores e o inferno aos concorrentes. Que, como se sabe, está cheio de boas intenções. Só que desta vez parece cumprir-se a promessa. Daí o sorriso de Delfim. Nem os Pass, nem os Phatos o fizeram sorrir assim. Este é o tipo de objecto que lhe permite concretizar a sua filosofia de vida: vender qualidade a preço acessível.
Rui Borges e o seu gira-discos
Numa sala pequena, com poucas condições e muito menos meios que as vedetas do show, o Rui conseguiu obter uma maioria representativa de opiniões favoráveis dos participantes na iniciativa do Hificlube. Fundamentalmente, as pessoas afirmam ter-se sentido bem na sala da Delmax.
Terá sido por causa do seu gira-discos, que é uma extensão do si próprio? Da luz mágica das válvulas (e das velas) que convidavam ao ritual da partilha? Da forma como o casal Borges recebe os amigos e visitantes? Da música que o Rui escolhe para si próprio e os outros ouvem por tabela? Eu acho que é uma questão de 'kharma'. Quando o que fazemos com gosto, não é um negócio, é antes uma forma de estar na vida, arriscamo-nos a que aconteçam coisas bonitas com esta...
André Marques, a Onkyo e a Hifidelio
A renovação da 'espécie' é fundamental para evitar a extinção. É o que vai acontecer se os audiófilos não acompanharem a evolução tecnológica. Eu adoro válvulas e gira-discos mas não sou fundamentalista e raramente os utilizo no dia-a-dia. Sinto que tenho de manter um espírito aberto ao presente para garantir o futuro. Os equipamentos digitais são cada vez mais sofisticados e complexos e alguns fazem-se acompanhar de manuais que são autênticas teses de doutoramento. É preciso haver do outro lado quem saiba explicar de uma forma simples e competente 'para que serve', 'como se faz', quais as vantagens do iLink, HDMI, Wi-FI, NET-Tune, bases de dados, redes domésticas, etc.
O André, que conheci no Audioshow, é uma daquelas excepções que confirmam a regra de que os 'vendedores' não dominam aquilo que vendem (veja-se o email de Rogério Neiva em Opinião dos Leitores 4). O André não só revelou conhecimentos acima da média, explicou com visível entusiasmo quais as características inovadoras dos Onkyo. E soube responder na ponta da língua a todas as questões que lhe coloquei, mesmo as que continham 'rasteiras'. São mais pessoas como o André que fazem falta no nosso mercado.
Ou arriscamo-nos a cumprir a definição shakespeareana de vida: OUT, OUT brief candle (aqui pode ler-se válvula em vez de vela)! Life is but a walking shadow, a poor player that struts and frets his hour upon the stage and then is heard no more. ....