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2005

Dual Disc: O Corpo Pela Alma



Até pelas dimensões, o CD não podia competir em «valor artístico» com o LP. Isto era apenas o princípio de um processo mais vasto de passagem da sociedade «materialista» para a sociedade de informação. E digo materialista não no sentido económico mas físico do termo. Enquanto objecto de culto, o LP simbolizava a representação física da música. Daí que o prazer do coleccionismo se reflectisse também no cuidado posto na sua conservação e no ritual da reprodução (a propósito, transcrevo um excerto de um texto meu sob o título «Arte analógica»):



«Retira-se o disco da capa com dois dedos leves, qual hóstia sagrada no acto litúrgico. Coloca-se o disco no prato e faz-se descer o braço. Há quem consiga apontar a agulha com a precisão de um cirurgião, que só depois segue pelo seu pé o tortuoso caminho, contrariando a força centrífuga e lavrando os sons enterrados na superfície ondulante das espiras hipnóticas, numa fritura branda e estranha para quem já nasceu na era digital. A arte de baixar e levantar manualmente o braço do gira-discos devia ter um capítulo na Ars Amandi, de Ovídio. Quando a agulha penetra a espira em profundidade, inicia-se o coito musical, que pode durar apenas o tempo de uma faixa ou um lado completo: A ou B. Até o virar do disco tinha um efeito de suspensão narrativa, um sentimento de puro gozo de antecipação, que se perdeu com o CD, tal como com o fim dos intervalos no cinema para ir ao buffet».


A consciência da dolorosa caducidade tornava o LP um objecto a preservar: a música era apenas a alma num corpo com prazo de validade. Há quem os conserve ainda com o respeito dedicado aos mortos no antigo Egipto. O CD foi lançado sob o slogan «som perfeito para sempre», sendo, desde logo, relativizada a importância do «corpo»: riscos, dedadas, empenos nada o afectava. A propósito, escrevi também na mesma ocasião:


«No CD a música é uma complexa trama de números cabalísticos; não há contacto físico entre a agulha de luz e o disco; e o próprio acto de reprodução é regulado à distância por controlo tão remoto quanto asséptico: não há desgaste, nem risco, no duplo sentido da palavra. Eis porque haverá sempre quem prefira sofrer os efeitos perversos da electricidade estática, o desespero dos empenos, a angústia da morte anunciada das espiras, em troca do prazer de ouvir e coleccionar LP raros, que se vão tornando objectos de colecção. Ou talvez por isso... »


Foram as editoras que, na ânsia do lucro, ousaram separarar o «corpo» da «alma» e abriram assim a caixa de Pandora da troca de ficheiros de música na net que se tornou endémica e incontrolável. O disco, enquanto objecto físico, tinha deixado de ter valor de colecção. Daí o sucesso do MP3 e do iPod onde num único disco rígido e impessoal se pode «guardar» o conteúdo de 500 álbuns. Na sociedade da informação, o «artwork» (as capas») e todo o material gráfico que era antes parte integrante do disco tornou-se irrelevante.


No fundo o mercado da música limita-se a acompanhar os mercados financeiros onde o dinheiro é transaccionado em quantidades astronómicas sem movimento físico: já não se sujam as mãos a contar dinheiro, mesmo quando é «sujo».


Num futuro tão próximo que se confunde já com o presente, também não haverá discos: nem de vinil, nem ópticos, nem rígidos, nada. Toda a música estará depositada nos cofres fortes das editoras em gigantescas memórias de estado sólido (gasoso?) e as pessoas farão levantamentos, transferências ou carregamentos do seu cartão de crédito pessoal por computador para ouvir em casa ou no iPod.


Ora o que é verdade em relação à música também o será em relação ao cinema. O lançamento recente no EUA do Kaleidoscope, um sistema doméstico de disco rígido que armazena centenas de DVDs, que podem depois ser acedidos de qualquer ponto da casa e permite assim a várias pessoas verem filmes diferentes simultaneamente, é o mote para o fim do DVD enquanto suporte físico. O Kaleidoscope vende-se já com «carregamento» de vários filmes aos quais se podem adicionar depois outros filmes a gosto. Hollywood já intentou uma acção em tribunal contra o fabricante por potencial violação de direitos de autor. A batalha judicial vai durar o tempo suficiente para entretanto todos os lares disporem de banda suficientemente larga para alugar filmes via internet a partir do «Banco Central de Hollywood». As inevitáveis «fugas» P2P não serão mais que migalhas num negócio de milhões e terão o mesmo significado que o crédito mal-parado no sistema bancário: ossos do ofício que se toleram dentro de critérios objectivos de gestão.


O lançamento de novos formatos áudio, como o SACD e o DVD-Audio (ao fim de cinco anos não passam de nichos de mercado), e de formatos vídeo como o Blu-Ray e o HD-DVD são tentativas de tapar o sol com a peneira; enquanto o pau vai e vem (o processo de «desmaterialização» da música gravada é irreversível) tenta-se impingir aos consumidores sob uma nova «capa» (e com inegável qualidade no caso do SACD) o mesmo produto que já foi antes vendido em LP, MC, CD, DCC, MD, DVD, etc.


Neste contexto, a actual tentativa de lançar ainda um novo formato híbrido, o DualDisc, como concorrente do SACD, é, no mínimo, patética. Ainda mais quando o DualDisc não passa de um remendo composto por duas metades coladas costas com costas: de um lado é CD do outro é DVD, que pode conter áudio multicanal de alta resolução e imagens vídeo. Esta foi a única forma encontrada para o DVD-Audio contrariar a vantagem comercial do SACD de compatibilidade com os leitores-CD convencionais. Teria sido mais fácil e barato editar versões duplas CD/DVD na mesma embalagem. De qualquer maneira tem de se abrir a gaveta para virar o disco...


O mais curioso é que a Sony, a principal interessada no fracasso do DualDisc, é junto com a Universal, EMI, BMG e Warner, um dos apoiantes do formato: ter-se-á juntado a eles para os vencer, numa interpretação perversa da velha máxima: «se não os podes vencer...»?


Acontece, porém, que para conseguir manter a espessura da «sanduíche» nos 1,5mm, o limite técnico aceitável pela maior parte das «drives», nomeadamente dos leitores-CD dos automóveis, foi necessário reduzir o tempo útil para 60 minutos e a espessura da metade CD para 0,7 mm, colocando-o fora da norma oficial de 1,1 mm do famoso «Red Book». Ora isto foi o suficiente para a Philips, a que se seguiu a Marantz, Lexicon, Mark Levinson, JVC, a Meridian, um apoiante indefectível do DVD-Audio e inimigo declarado do SACD, e, pasme-se! a própria Sony, publicar na imprensa avisos aos consumidores de que não se responsabilizavam por avarias causadas nos seus modelos pela utilização de DualDisc. A Lexicon e a Mark Levinson, entretanto, deram o dito por não dito, mas o aviso à navegação está feito. O mais incrível é que na capa do próprio do disco o aviso está lá em letras pequeninas. Nos EUA, quando um DualDisc encrava o mecanismo de leitura do leitor-CD do carro, é preciso saber quem paga a despesa e, ao colocarem-se ambos, os fabricantes de hardware e software, com o rabo de fora, quem vai pagar é o «chancho».


Isto faz-me lembrar aquele filme no qual um grupo de amigos passa um fim-de-semana numa estância balnear com um cadáver, levando-o a festas e outros eventos sociais, tentando fazer crer aos outros que ainda estava vivo...

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