E eu que in illo tempore era um idealista, como ainda o hoje sou, propus ao João de Barros, então editor da revista Imasom, que se criasse um espaço próprio, com mais dignidade para expor e demonstrar o hifi.
O João de Barros resistiu à ideia porque os principais anunciantes da revista estavam satisfeitos com o estado de coisas. Mas já todos tinham consciência que os tempos estavam a mudar: a electrónica de entretenimento tinha então pernas para andar sozinha - e cederam em parte.
Nasceu assim a Vidaudio, que era uma “feira” mais especializada: as “aparelhagens”, estrategicamente colocadas de cada lado dos corredores, bombardeavam os passantes com uma cacofonia de sons cujo volume subia à medida que cada um sentia que o adversário se estava a evidenciar: os passantes têm natural tendência para virar os olhos para o ponto que os ouvidos identificam como a fonte de som mais alta...
Mais alto era então melhor, tanto que um dia um auditório improvisado desabou com fragor com o sopro dos canhões da “Abertura 1812”, de Tchaikovsky, e as pessoas fugiram em pânico, pensando que era de novo a revolução…
E era, de facto. A Imasom começou por patrocinar, no âmbito da FIL, um concurso de “DIY”, cujo sucesso foi o embrião do que viria a ser anos mais tarde o Audioshow, que só se realizou depois de eu ter abandonado a revista Audio.
Durante 16 anos, que corresponderam a um certo “boom” consumista na área do “highend”, o Audioshow, melhor (a “Escola” e o Alfa) ou pior (ISCTE), lá seguiu um padrão inspirado no HifiShow, de Londres. Nunca atingiu o requinte do “Highend”, de Frankfurt, nem das “Journées de La Haute Fidelité”, de Paris, cujas reportagens publiquei em jornais e revistas, mas, considerando o país pequeno que somos, podia considerar-se um sucesso de público. De público interessado, entenda-se.
Havia dignidade nas apresentações e cumpriam-se todos os cânones e rituais audiófilos, que são fundamentais para os fiéis. Criou-se ainda o espírito de tertúlia, de troca de experiências, de opiniões, como se a vertente comercial do certame fosse colocada em segundo plano, embora estivesse sempre subjacente.
O Audioshow era a concretização do sonho, a materialização da palavra dos críticos, ali perante os olhos e os ouvidos dos leitores para que pudessem finalmente concordar ou discordar do que fora escrito ao longo do ano.
Nunca chegámos a atingir o patamar superior da evolução audiófila da tertúlia parisiense: Jean Hiraga reunido em noite de chuva numa cave recôndita com os seus fiéis, de forma quase clandestina, como se de um culto antigo e proibido pelas leis do estado se tratasse, demonstrando a sua última criação a válvulas com colunas de corneta. Antes da música soar, Jean falava e os audiófilos presentes bebiam-lhe as palavras, não ousando interrompê-lo para não quebrar o encanto.
Ou a apresentação das Apogee Duetta, por Jason Bloom himself, num palácio setecentista de salas amplas e tectos altos com mobiliário estilo Império. O coro da Missa Criola, de Ariel Ramirez, ecoava no palácio com a ambiência própria da religiosidade pagã de uma catedral tropical.
Recordo ainda como se fosse hoje o dia em que ouvi Plácido Domingo cantar “O palhaço” numas Magneplanar alimentadas por Audio Research, no salão nobre do Hotel Nikko. Quando acabou, fiquei por uns momentos sentado, com as pernas trémulas e incapaz de me levantar.
E o mosteiro medieval onde fui recebido pelo distribuidor francês da Golmund e da Wilson, que ele mandara reconstruir e decorar para demonstrar com marcação alguns dos melhores equipamentos de som do mundo.
Eu próprio apresentei perante uma plateia de audiófilos nortenhos as Apogee Diva, no âmbito do Festival de Música da Póvoa do Varzim, com o patrocínio da Audio e o apoio técnico da Imacústica.
Em todos os casos, é de dignidade e de respeito pelo highend que se trata.
A propósito do filme Maria Antonieta, escreveu VPV, no Público, que lhe terão cortado a cabeça não por ser traidora e déspota, mas porque a rainha, ao tentar no fim descer ao nível do povo para lhe agradar, perdeu a divindade da realeza. A 'realeza' do hifi não se pode misturar com as 'massas' da electrónica de consumo.
O AV veio mudar este estado de coisas. Primeiro de forma tímida, depois tomando conta das operações, exigindo mais e mais espaço e, sobretudo, mais público. Por trás estavam as grandes multinacionais, cuja voragem iria destruir todo o edifício audiófilo construído durante décadas.
Primeiro, foi Londres, com a “feira” de Earl's Court e o “Live”, depois Paris, com o centro de congressos de Concorde Lafayette, e até o “Highend Show ” se mudou do bucolismo do Hotel Kempinski, de Frankfurt, para o MOC, de Munique. Era o progresso inevitável, dizia-se.
Entretanto, o “Live” acabou e o “show” do Penta tem agora um concorrente do outro lado da rua, no hotel Renaissance. Em Paris, a tertúlia reagrupou-se e a pouco e pouco volta o espírito audiófilo em toda a Europa. E também na América: na CES 2007, o highend vai ser pela primeira vez 'hospedado' no luxo do Hotel Venetian...
Como sempre, Portugal segue atrás do pelotão: 20 anos depois, voltámos ao ponto de partida - a FIL. Onde houve até quem se sentisse como um jovem que, tendo idolatrado, durante anos, uma mulher bela e inacessível, a viu agora a despir-se num clube de strip.
Eu sei que faz parte da evolução natural do mercado, e até compreendo o entusiasmo de alguns. É uma fase pela qual todos vamos ter de passar. Como sempre, haverá quem ganhe e quem perca com isso. O Hificlube irá apoiar uns e os outros. Porque somos demasiado poucos para suportar uma cisão no seio da comunidade audiófila.
Mas em verdade vos digo, o hifi para as massas é como o turismo para as massas: ocupam, destroem e abandonam depois sem remorso a terra queimada como pragas de gafanhotos, sem nunca compreenderem a cultura do povo que assim prostituíram.
Compete-nos a todos semear de novo para que a relva volte a crescer…
O João de Barros resistiu à ideia porque os principais anunciantes da revista estavam satisfeitos com o estado de coisas. Mas já todos tinham consciência que os tempos estavam a mudar: a electrónica de entretenimento tinha então pernas para andar sozinha - e cederam em parte.
Nasceu assim a Vidaudio, que era uma “feira” mais especializada: as “aparelhagens”, estrategicamente colocadas de cada lado dos corredores, bombardeavam os passantes com uma cacofonia de sons cujo volume subia à medida que cada um sentia que o adversário se estava a evidenciar: os passantes têm natural tendência para virar os olhos para o ponto que os ouvidos identificam como a fonte de som mais alta...
Mais alto era então melhor, tanto que um dia um auditório improvisado desabou com fragor com o sopro dos canhões da “Abertura 1812”, de Tchaikovsky, e as pessoas fugiram em pânico, pensando que era de novo a revolução…
E era, de facto. A Imasom começou por patrocinar, no âmbito da FIL, um concurso de “DIY”, cujo sucesso foi o embrião do que viria a ser anos mais tarde o Audioshow, que só se realizou depois de eu ter abandonado a revista Audio.
Durante 16 anos, que corresponderam a um certo “boom” consumista na área do “highend”, o Audioshow, melhor (a “Escola” e o Alfa) ou pior (ISCTE), lá seguiu um padrão inspirado no HifiShow, de Londres. Nunca atingiu o requinte do “Highend”, de Frankfurt, nem das “Journées de La Haute Fidelité”, de Paris, cujas reportagens publiquei em jornais e revistas, mas, considerando o país pequeno que somos, podia considerar-se um sucesso de público. De público interessado, entenda-se.
Havia dignidade nas apresentações e cumpriam-se todos os cânones e rituais audiófilos, que são fundamentais para os fiéis. Criou-se ainda o espírito de tertúlia, de troca de experiências, de opiniões, como se a vertente comercial do certame fosse colocada em segundo plano, embora estivesse sempre subjacente.
O Audioshow era a concretização do sonho, a materialização da palavra dos críticos, ali perante os olhos e os ouvidos dos leitores para que pudessem finalmente concordar ou discordar do que fora escrito ao longo do ano.
Nunca chegámos a atingir o patamar superior da evolução audiófila da tertúlia parisiense: Jean Hiraga reunido em noite de chuva numa cave recôndita com os seus fiéis, de forma quase clandestina, como se de um culto antigo e proibido pelas leis do estado se tratasse, demonstrando a sua última criação a válvulas com colunas de corneta. Antes da música soar, Jean falava e os audiófilos presentes bebiam-lhe as palavras, não ousando interrompê-lo para não quebrar o encanto.
Ou a apresentação das Apogee Duetta, por Jason Bloom himself, num palácio setecentista de salas amplas e tectos altos com mobiliário estilo Império. O coro da Missa Criola, de Ariel Ramirez, ecoava no palácio com a ambiência própria da religiosidade pagã de uma catedral tropical.
Recordo ainda como se fosse hoje o dia em que ouvi Plácido Domingo cantar “O palhaço” numas Magneplanar alimentadas por Audio Research, no salão nobre do Hotel Nikko. Quando acabou, fiquei por uns momentos sentado, com as pernas trémulas e incapaz de me levantar.
E o mosteiro medieval onde fui recebido pelo distribuidor francês da Golmund e da Wilson, que ele mandara reconstruir e decorar para demonstrar com marcação alguns dos melhores equipamentos de som do mundo.
Eu próprio apresentei perante uma plateia de audiófilos nortenhos as Apogee Diva, no âmbito do Festival de Música da Póvoa do Varzim, com o patrocínio da Audio e o apoio técnico da Imacústica.
Em todos os casos, é de dignidade e de respeito pelo highend que se trata.
A propósito do filme Maria Antonieta, escreveu VPV, no Público, que lhe terão cortado a cabeça não por ser traidora e déspota, mas porque a rainha, ao tentar no fim descer ao nível do povo para lhe agradar, perdeu a divindade da realeza. A 'realeza' do hifi não se pode misturar com as 'massas' da electrónica de consumo.
O AV veio mudar este estado de coisas. Primeiro de forma tímida, depois tomando conta das operações, exigindo mais e mais espaço e, sobretudo, mais público. Por trás estavam as grandes multinacionais, cuja voragem iria destruir todo o edifício audiófilo construído durante décadas.
Primeiro, foi Londres, com a “feira” de Earl's Court e o “Live”, depois Paris, com o centro de congressos de Concorde Lafayette, e até o “Highend Show ” se mudou do bucolismo do Hotel Kempinski, de Frankfurt, para o MOC, de Munique. Era o progresso inevitável, dizia-se.
Entretanto, o “Live” acabou e o “show” do Penta tem agora um concorrente do outro lado da rua, no hotel Renaissance. Em Paris, a tertúlia reagrupou-se e a pouco e pouco volta o espírito audiófilo em toda a Europa. E também na América: na CES 2007, o highend vai ser pela primeira vez 'hospedado' no luxo do Hotel Venetian...
Como sempre, Portugal segue atrás do pelotão: 20 anos depois, voltámos ao ponto de partida - a FIL. Onde houve até quem se sentisse como um jovem que, tendo idolatrado, durante anos, uma mulher bela e inacessível, a viu agora a despir-se num clube de strip.
Eu sei que faz parte da evolução natural do mercado, e até compreendo o entusiasmo de alguns. É uma fase pela qual todos vamos ter de passar. Como sempre, haverá quem ganhe e quem perca com isso. O Hificlube irá apoiar uns e os outros. Porque somos demasiado poucos para suportar uma cisão no seio da comunidade audiófila.
Mas em verdade vos digo, o hifi para as massas é como o turismo para as massas: ocupam, destroem e abandonam depois sem remorso a terra queimada como pragas de gafanhotos, sem nunca compreenderem a cultura do povo que assim prostituíram.
Compete-nos a todos semear de novo para que a relva volte a crescer…