O tempo estava bom este ano em Las Vegas. E só um audiófilo fanático como eu se autoflagela, das nove da manhã às seis da tarde, em hotéis de apartamentos manhosos, como são o Alexis e o St. Tropez, onde se exibe, qual bailarina entradota, o High Performance Audio.
Escada acima, escada abaixo, no Alexis
Subi e desci dezenas de vezes as escadas de um labirinto de quartos de engate fácil, caro e de resultado duvidoso (como o highend), com a mala carregada de catálogos, e mergulhei no bulício alucinante da Feira, com o objectivo único de fotografar e ouvir, por breves momentos, que o tempo urge, centenas de sistemas e componentes áudio, só para depois poder dizer, como os alpinistas, que estive lá em cima, no topo da montanha do som, e satisfazer assim a curiosidade dos meus leitores, que em casa, no conforto do lar, lêem o relato das minhas experiências, quiçá roendo-se intimamente de inveja por não poderem lá estar a divertir-se como eu. Olhem que não, olhem que não: aquilo é uma canseira!...
Bellagio, foto rara (porque proibida) do casino em actividade
A viagem é longa, demasiado longa, o jetlag atrai-nos para a cama a meio da tarde, e temos de resistir à tentação, sob pena de acordarmos depois de madrugada, sem sono e sem nada para fazer, a não ser jogar umas fichas nas slot-machines ou nas mesas de jogo, cá em baixo no casino do hotel aberto 24 horas por dia, onde habitam zombies que nunca saberemos se estão ali também, como nós, porque não conseguem dormir, ou se ainda lá estão porque não chegaram a deitar-se.
Hotel Bellagio e os seus repuxos dançantes (neste hotel foi rodado o filme Ocean's Eleven)
O segredo é viver by the clock. Se o relógio nos diz que são 7 da manhã, então são horas de levantar, tomar o duche e o lauto pequeno-almoço (no Bellagio o pequeno almoço é de uma fartura bíblica), ainda que por cá sejam já cinco da tarde, a hora do chá.
Hotel Paris-Las Vegas (mesmo em frente do Bellagio)
A noite de Las Vegas é fria e seca, e o ar do deserto é tão limpo que os hotéis iluminados se recortam no céu negro de breu como sonhos a três dimensões e a cores. Mas também pode ser “quente” e “húmida”, depende fundamentalmente de como queremos gastar os dólares: no jogo, com uma corte de “hookers”, de roupas e sorrisos postiços e caros, demasiado caros; ou em família, como eu, que, ninguém diria, sou pessoa pacata, e passados trinta anos ainda gosto de namorar a minha esposa e de lhe oferecer uma jantar romântico, num dos muitos restaurantes dos principais hotéis, quase todos excelentes, diga-se. Nem só de áudio vive um homem e, à noite, desligo o som e tento compensá-la dos hot-dogs comidos à pressa deglutidos com a ajuda de coca-cola mole entre duas audições.
Venice Hotel (ao fundo) com o vulcão de água e fogo do Mirage em primeiro plano
Em La Vegas, come-se maravilhosamente bem. Tudo depende de se saber escolher (e de se poder pagar o que se escolhe). Este ano optei por um dos novos restaurantes do Mirage, o Stack, em detrimento do único espectáculo que ainda não vi, Le Rêve, concebido por Falcone para o Cirque Du Soleil, no sumptuoso hotel-casino Wynn, a última maravilha do magnata Steve Wynn.
A decoração do Stack é moderna, as paredes desenvolvendo-se em espectaculares ondas de madeira natural, a la Guggenheim Museum, de Frank Gehry. Tentei transplantar mentalmente o Stack para o parque Mayer, envolto em fumo de sardinha assada: havia qualquer coisa que soava fora-de-fase no meu exercício mental, como alguns dos sistemas que ouvi no Alexis. Desisti. Mas deu-me saudades de peixe: como não houvesse sardinhas assadas, pedi robalo do Chile grelhado com o delicado toque mediterrânico do azeite puro. Acompanhei-o com um copo de Chardonnay da Califórnia - “oakey”, por sugestão do chefe. Perfeitos ambos. Muito bem também o fígado grelhado do Spago, no Ceasar's Forum, regado com um Pinot Noir divino. Ou o pampo com espinafres salteados e azeitonas e um Chianti Classico Riservo, do Olive's, no Bellagio. Ou ainda os Scampi a la Bolognese, do Fornaio, no New York, New York.
Ceasar's Hotel, onde se pode confraternizar com Cleópatra e Júlio César vestidos a rigor e protegidos por centuriões de dois metros de altura
Comer uma suculenta posta de robalo fresco no meio do deserto (mais fresco que em muitos restaurantes que conheço à beira mar plantados), é apenas uma das muitas idiossincrasias de Las Vegas. A outra é a de olhar à volta e ver sentados na mesma mesa comensais vestidos pela Nike, de boné na cabeça, com a pala voltada para trás, e botas com atacadores a rojar pelo chão; e pela Versace, de laço e lapela de seda, ou de ombros descobertos e peito opulento e provocador, sem conseguirmos catalogá-los com o rigor europeu em estratos sociais definidos. No final, é o jovem com a fralda de fora e ar de desportista alucinado que saca do cartão de platina e paga a conta: lagosta do Maine e champagne Crystal. Algum rapper da moda, pensei, quando, ao passar por mim, me ofuscou com um Rolex de ouro cravejado de brilhantes, levando pela mão uma loira deslavada, que dava saltinhos nos sapatos vertiginosos para conseguir acompanhar a sua passada larga e arrogante de negro de subúrbio em ascensão meteórica e brilho breve.
Um dos sumptuosos corredores do Bellagio
Pelos corredores do Bellagio, vêem-se noivas vestidas a rigor com a sua corte de convidados, que se misturam com mães atarefadas, empurrando carrinhos de bebé, jovens bonitas equilibrando-se no alto de sapatos-agulha, de mão dada com homens já não tão jovens - e ainda menos bonitos - e gente de todos os formatos (30% da população americana sofre de obesidade mórbida), idades, nacionalidades (ouvi passar por mim um esvoaçante: puta que o pariu! com sotaque brasileiro) cores, raças (muitos asiáticos), credos (judeus ortodoxos de patilhas caindo em longos caracóis cruzam-se com muçulmanos de longos trajes brancos) e etnias, vestida de forma ainda mais diversa, chocando uns com os outros como formigas num carreiro, com malas, sacos de viagem, de T-shirt ou sobretudo Armani como Mourinho, já instalados, acabados de chegar ou de partida, de fato de treino, calções ou roupão do hotel e o cabelo a pingar, vindos da piscina ou do spa.
New York Hotel: iconografia novaiorquina
Ninguém aponta o dedo a ninguém: ali o lema é mind your own business. Este ano vi pela primeira vez um tipo de chapéu à cowboy e botas texanas a abandonar o hotel Bellagio, o mais fino da cidade, aos gritos de mother fuckers, mas isso deve ter sido porque lhe saiu em sorte a fava neste bolo-rei de frutas cristalizadas e luzes coloridas que é Las Vegas.
Convention Center, Central Hall
A Convenção, é assim que os locais chamam à CES, leva à cidade 150 000 pessoas, que se juntam às centenas de milhares que vão lá apenas para se divertirem, e esta súbita pressão demográfica em nada parece afectar o seu funcionamento harmonioso, sendo a manifestação mais visível as longas filas para o breakfast-buffet, o autocarro, o monocarril, os táxis, que, contudo, são digeridas num ápice. A primeira vez estranha-se, depois entranha-se: numa fila de 100 pessoas para o táxi, interminável e coisa aí para duas horas pelos nossos padrões, passamos de centésimo a primeiro em poucos minutos, tal é o fluxo ininterrupto de carros à porta do hotel, circunstância em que temos de esportular um dólar ao porteiro, que nos abre a porta e dá a indicação ao taxista do destino anunciado, se não queremos que a feche com estrondo atrás de nós, como aviso claro à navegação: a nossa, em termos de futuro: para a próxima já sabes!; e a dos que aguardam a sua vez na fila, em termos de presente: tás a ver, meu?!...
Continua
Escada acima, escada abaixo, no Alexis
Subi e desci dezenas de vezes as escadas de um labirinto de quartos de engate fácil, caro e de resultado duvidoso (como o highend), com a mala carregada de catálogos, e mergulhei no bulício alucinante da Feira, com o objectivo único de fotografar e ouvir, por breves momentos, que o tempo urge, centenas de sistemas e componentes áudio, só para depois poder dizer, como os alpinistas, que estive lá em cima, no topo da montanha do som, e satisfazer assim a curiosidade dos meus leitores, que em casa, no conforto do lar, lêem o relato das minhas experiências, quiçá roendo-se intimamente de inveja por não poderem lá estar a divertir-se como eu. Olhem que não, olhem que não: aquilo é uma canseira!...
Bellagio, foto rara (porque proibida) do casino em actividade
A viagem é longa, demasiado longa, o jetlag atrai-nos para a cama a meio da tarde, e temos de resistir à tentação, sob pena de acordarmos depois de madrugada, sem sono e sem nada para fazer, a não ser jogar umas fichas nas slot-machines ou nas mesas de jogo, cá em baixo no casino do hotel aberto 24 horas por dia, onde habitam zombies que nunca saberemos se estão ali também, como nós, porque não conseguem dormir, ou se ainda lá estão porque não chegaram a deitar-se.
Hotel Bellagio e os seus repuxos dançantes (neste hotel foi rodado o filme Ocean's Eleven)
O segredo é viver by the clock. Se o relógio nos diz que são 7 da manhã, então são horas de levantar, tomar o duche e o lauto pequeno-almoço (no Bellagio o pequeno almoço é de uma fartura bíblica), ainda que por cá sejam já cinco da tarde, a hora do chá.
Hotel Paris-Las Vegas (mesmo em frente do Bellagio)
A noite de Las Vegas é fria e seca, e o ar do deserto é tão limpo que os hotéis iluminados se recortam no céu negro de breu como sonhos a três dimensões e a cores. Mas também pode ser “quente” e “húmida”, depende fundamentalmente de como queremos gastar os dólares: no jogo, com uma corte de “hookers”, de roupas e sorrisos postiços e caros, demasiado caros; ou em família, como eu, que, ninguém diria, sou pessoa pacata, e passados trinta anos ainda gosto de namorar a minha esposa e de lhe oferecer uma jantar romântico, num dos muitos restaurantes dos principais hotéis, quase todos excelentes, diga-se. Nem só de áudio vive um homem e, à noite, desligo o som e tento compensá-la dos hot-dogs comidos à pressa deglutidos com a ajuda de coca-cola mole entre duas audições.
Venice Hotel (ao fundo) com o vulcão de água e fogo do Mirage em primeiro plano
Em La Vegas, come-se maravilhosamente bem. Tudo depende de se saber escolher (e de se poder pagar o que se escolhe). Este ano optei por um dos novos restaurantes do Mirage, o Stack, em detrimento do único espectáculo que ainda não vi, Le Rêve, concebido por Falcone para o Cirque Du Soleil, no sumptuoso hotel-casino Wynn, a última maravilha do magnata Steve Wynn.
A decoração do Stack é moderna, as paredes desenvolvendo-se em espectaculares ondas de madeira natural, a la Guggenheim Museum, de Frank Gehry. Tentei transplantar mentalmente o Stack para o parque Mayer, envolto em fumo de sardinha assada: havia qualquer coisa que soava fora-de-fase no meu exercício mental, como alguns dos sistemas que ouvi no Alexis. Desisti. Mas deu-me saudades de peixe: como não houvesse sardinhas assadas, pedi robalo do Chile grelhado com o delicado toque mediterrânico do azeite puro. Acompanhei-o com um copo de Chardonnay da Califórnia - “oakey”, por sugestão do chefe. Perfeitos ambos. Muito bem também o fígado grelhado do Spago, no Ceasar's Forum, regado com um Pinot Noir divino. Ou o pampo com espinafres salteados e azeitonas e um Chianti Classico Riservo, do Olive's, no Bellagio. Ou ainda os Scampi a la Bolognese, do Fornaio, no New York, New York.
Ceasar's Hotel, onde se pode confraternizar com Cleópatra e Júlio César vestidos a rigor e protegidos por centuriões de dois metros de altura
Comer uma suculenta posta de robalo fresco no meio do deserto (mais fresco que em muitos restaurantes que conheço à beira mar plantados), é apenas uma das muitas idiossincrasias de Las Vegas. A outra é a de olhar à volta e ver sentados na mesma mesa comensais vestidos pela Nike, de boné na cabeça, com a pala voltada para trás, e botas com atacadores a rojar pelo chão; e pela Versace, de laço e lapela de seda, ou de ombros descobertos e peito opulento e provocador, sem conseguirmos catalogá-los com o rigor europeu em estratos sociais definidos. No final, é o jovem com a fralda de fora e ar de desportista alucinado que saca do cartão de platina e paga a conta: lagosta do Maine e champagne Crystal. Algum rapper da moda, pensei, quando, ao passar por mim, me ofuscou com um Rolex de ouro cravejado de brilhantes, levando pela mão uma loira deslavada, que dava saltinhos nos sapatos vertiginosos para conseguir acompanhar a sua passada larga e arrogante de negro de subúrbio em ascensão meteórica e brilho breve.
Um dos sumptuosos corredores do Bellagio
Pelos corredores do Bellagio, vêem-se noivas vestidas a rigor com a sua corte de convidados, que se misturam com mães atarefadas, empurrando carrinhos de bebé, jovens bonitas equilibrando-se no alto de sapatos-agulha, de mão dada com homens já não tão jovens - e ainda menos bonitos - e gente de todos os formatos (30% da população americana sofre de obesidade mórbida), idades, nacionalidades (ouvi passar por mim um esvoaçante: puta que o pariu! com sotaque brasileiro) cores, raças (muitos asiáticos), credos (judeus ortodoxos de patilhas caindo em longos caracóis cruzam-se com muçulmanos de longos trajes brancos) e etnias, vestida de forma ainda mais diversa, chocando uns com os outros como formigas num carreiro, com malas, sacos de viagem, de T-shirt ou sobretudo Armani como Mourinho, já instalados, acabados de chegar ou de partida, de fato de treino, calções ou roupão do hotel e o cabelo a pingar, vindos da piscina ou do spa.
New York Hotel: iconografia novaiorquina
Ninguém aponta o dedo a ninguém: ali o lema é mind your own business. Este ano vi pela primeira vez um tipo de chapéu à cowboy e botas texanas a abandonar o hotel Bellagio, o mais fino da cidade, aos gritos de mother fuckers, mas isso deve ter sido porque lhe saiu em sorte a fava neste bolo-rei de frutas cristalizadas e luzes coloridas que é Las Vegas.
Convention Center, Central Hall
A Convenção, é assim que os locais chamam à CES, leva à cidade 150 000 pessoas, que se juntam às centenas de milhares que vão lá apenas para se divertirem, e esta súbita pressão demográfica em nada parece afectar o seu funcionamento harmonioso, sendo a manifestação mais visível as longas filas para o breakfast-buffet, o autocarro, o monocarril, os táxis, que, contudo, são digeridas num ápice. A primeira vez estranha-se, depois entranha-se: numa fila de 100 pessoas para o táxi, interminável e coisa aí para duas horas pelos nossos padrões, passamos de centésimo a primeiro em poucos minutos, tal é o fluxo ininterrupto de carros à porta do hotel, circunstância em que temos de esportular um dólar ao porteiro, que nos abre a porta e dá a indicação ao taxista do destino anunciado, se não queremos que a feche com estrondo atrás de nós, como aviso claro à navegação: a nossa, em termos de futuro: para a próxima já sabes!; e a dos que aguardam a sua vez na fila, em termos de presente: tás a ver, meu?!...
Continua