Os primeiros são os últimos, talvez por isso tenha deixado para o fim o highend - ou high performance audio para utilizar a designação oficial.
Na CES, o highend é tratado com a deferência e consideração que se reservava no século passado para a aristocracia caída em desgraça. A burguesia endinheirada, que tomou conta do poder após a 2ª Grande Guerra, sempre gostou de convidar para as suas festas duques, condes e marquesas, cuja única fortuna era o título nobiliárquico. Hoje foram substituídos pelas vedetas mediáticas, em cujo seio também há condes de pacotilha, que se mastigam (ugh!) e deitam fora como a pastilha elástica.
Na CES, o highend representa o papel da aristocracia, que enche as páginas das Hollas audiófilas, The Absolute Sound, Stereophile, etc., a que o Hificlube se associa por puro prazer como “outsider”, o que lhe permite ter uma visão mais clara e menos “engajada” da situação; as marcas japonesas são as vedetas mediáticas que mudam de visual de três em três meses para se manterem nas capas das revistas expostas (cada vez menos, hélas) nos escaparates.
Mas quando se trata de negócios de milhões, são as multinacionais da imagem, das telecomunicações e da informática que detêm realmente o poder. E quem está no poder não gosta de misturas: a monarquia fica sempre muito bem nas fotografias, mas está em declínio, e por isso é exposta às objectivas dos repórteres em lares de luxo da terceira idade, como o Alexis, aos quais se tenta dar a dignidade devida a quem já reinou mas está no ocaso da vida e já não tem poder económico. Hoje o iPod vende mais que todos os produtos highend juntos. E o negócio dos americanos não é música - é números: rappers negros como Puff Daddy ou 50 Cent, que escrevem letras a criticar ferozmente o sistema que os alimenta e no qual chafurdam sem qualquer consciência social, ganham fortunas obscenas que esbanjam de forma ainda mais obscena. E digam lá: aquilo é música?
No Alexis, ano após ano, vejo as mesmas caras, apenas com mais rugas e com menos cabelos, no mesmo local, com a mesma conversa da treta, a ouvir a mesma música de sempre, demonstrando os mesmos modelos, agora na versão 'Mk qualquer coisa', em salas vazias. Quando está sol, a maior parte dos visitantes prefere ficar cá fora junto à piscina ao ar livre, a arrotar gases de coca-cola com os dedos lambuzados dos molhos coloridos de hambúrgueres requentados, criticando sons que não ouviram ou ouviram mal, enquanto os fabricantes tentam negociar com os jornalistas amadores presentes uma “review” (de preferência positiva) num site improvisado à pressa. Para chegar às páginas da Stereophile já fia mais fino, e é quase tão complicado como entrar no mundo da Fórmula 1, onde se exige, como condição sine qua non, ter um bom patrocinador. O ano passado, obrigaram-me a esperar à porta da sala da Audio Research, porque estava lá dentro Michael Fremer, um judeu bem falante e influente, que se veste como um dandy, e que não queria ser perturbado. Este ano tentaram fazer-me o mesmo por causa de outro crítico da Stereophile, Kalman Rubinson, também judeu, como são quase todos os críticos de áudio americanos, este menos vem vestido e menos bem falante, ao que respondi: não espero e não volto. Entrei logo, claro. Devem ter pensado que eu era árabe e podia ficar ofendido. É que eu moro em Alcabideche, uma terra portuguesa de origem árabe, cujo nome se pode ler no meu 'Press Badge'... Se há coisa que detesto é “a brand with an attitude”. Daquelas que, mesmo tendo a sala vazia, parece que nos estão a fazer um favor por nos deixar ouvir duas faixas de um CD, num sistema milionário, que só se vende porque ainda há tipos como eu que voam 10 000 quilómetros para informar os seus leitores que ele existe e se recomenda, excitando-lhes assim o desejo de posse. Dantes quem tinha esta atitude era a Cello, de Mark Levinson. Viu-se onde isso a levou. E a ele também. Acho que o nosso Manuel Dias, da Imacústica, era capaz de lhes ensinar uma coisa ou duas sobre relações humanas.
Quando se fala da CES de Las Vegas, o leitor associa o acontecimento ao “glamour” (a propósito: a palavra é inglesa, e não francesa, significa brilho, e lê-se “glémâ” e não “glámúr”, como erradamente pensam as nossas locutoras e as “socialaites” pindéricas). Mas não há nada de glamouroso, muito menos no St. Tropez, onde a única forma de atrair pessoas é oferecer um “barbecue” à borla. Único inconveniente: perde-se uma hora na bicha e ficamos a cheirar a fumo. Quando alguém se sentava ao nosso lado, numa sala fechada do Alexis ou nos transportes gratuitos pagos pela CES, ficávamos logo a saber que ele também tinha ido ao St. Tropez. Consta que a CES vai colocar detectores de cheiros à entrada: quem cheirar ao barbecue do 'The Show', não entra…
De resto, as salas do St. Tropez estavam às moscas. Quando eu entrava de câmara em punho com um ar atarefado, e eles me viam com o “badge” da Press ao peito, saltavam da cadeira como que impulsionados por uma mola, na remota esperança de que alguém, algures no mundo, não interessa onde, pudesse porventura vir a saber que eles existem.
Quando descobriam que eu vinha de Portugal (onde é que isso fica?...), o interesse passava a mera curiosidade (será que este gajo sabe que estas válvulas foram abençoadas num templo budista?, ná!...), mas a demonstração da ordem lá se fazia. Pelo sim, pelo não, nunca se sabe, não é?…
Eu acho que eles não fazem lá muito negócio, a única diferença entre estes fabricantes e os nossos distribuidores é que nunca dão parte de fraco. Enquanto os nossos se lamentam, que o mercado está péssimo, não se vende nada, o pessoal anda a gastar o que tem e o que não tem em viagens ao Brasil, plasmas e telemóveis topo de gama com câmara fotográfica e MP3, e blá, blá. Já para os americanos (bom, a maior parte dos “residentes” no St. Tropez são sinoamericanos) o negócio está sempre florescente: “Great show, we are very pleased with the interest shown by the press, and we have had more visitors this year than last year, things are looking good for us, blá, blá”.Estão a ver a cena? A diferença entre o pessimismo e o optimismo não está nas vendas, está na confiança que se aparenta ter nos produtos e na esperança de uma resposta positiva do mercado.
Isto é uma coluna de som a energia eólica. Juro!.. (da Alex Nolan Design, o mesmo fabricante da coluna solar)
Quanto à diferença entre o Alexis e o show “pirata” do St.Tropez, que fica logo ali ao lado, reside sobretudo na filosofia da demonstração. No Alexis, a maior parte são marcas bem cotadas no mercado, já distribuídas em todo o mundo, pelo que se aproveita para cativar os jornalistas para testes e os distribuidores de todo o mundo para comprarem os novos modelos apresentados em versão mock-up com seis meses de antecedência, mesmo quando eles ainda não conseguiram vender os anteriores.
No St. Tropez, explora-se o ritual, a crença e a superstição e alguns dos gurus lembram-me mais bruxos, adivinhos e cartomantes numa feira de magia negra que gurus audiófilos. Criam-se ambientes de luz e som propícios à meditação transcendental para ouvir diferenças entre cabos criogenizados e cabos vulgares; válvulas raras de formas estranhas; leitores-CD apertados em tornos; colunas com espanta-espíritos pendurados; cabos que parecem os balões alongados que os palhaços utilizam para fazer cisnes e burrinhos, que oferecem depois às crianças passantes na rua em dia de festa; colunas de cornetas retorcidas; líquidos milagrosos (também há tinto da Califórnia e malte da Escócia para “abrir” os ouvidos dos mais cépticos), gira-discos com pratos que pesam uma tonelada e demoram meia-hora a atingir a velocidade de cruzeiro, amplificadores de 2W com 15% de distorção à máxima potência nos extremos de frequência, etc.
Que por vezes se oiça aqui som de qualidade transcendental (as Cabasse La Sphère, por exemplo), só prova que devemos abordar o fenómeno áudio sempre com um espírito aberto e nunca fazer juízos prévios de valor. Eu regressei de Las Vegas mais tolerante e mais feliz e, tal como Sócrates (o filósofo grego, não o outro) cada vez me convenço mais que só sei que nada sei. Há outros que sem nunca terem saído do quintal já sabem tudo. Que sejam muito felizes também. Isto chega para todos…
Nota: Próximos episódios em Maio de 2006: Highend Show, Munique
Na CES, o highend é tratado com a deferência e consideração que se reservava no século passado para a aristocracia caída em desgraça. A burguesia endinheirada, que tomou conta do poder após a 2ª Grande Guerra, sempre gostou de convidar para as suas festas duques, condes e marquesas, cuja única fortuna era o título nobiliárquico. Hoje foram substituídos pelas vedetas mediáticas, em cujo seio também há condes de pacotilha, que se mastigam (ugh!) e deitam fora como a pastilha elástica.
Na CES, o highend representa o papel da aristocracia, que enche as páginas das Hollas audiófilas, The Absolute Sound, Stereophile, etc., a que o Hificlube se associa por puro prazer como “outsider”, o que lhe permite ter uma visão mais clara e menos “engajada” da situação; as marcas japonesas são as vedetas mediáticas que mudam de visual de três em três meses para se manterem nas capas das revistas expostas (cada vez menos, hélas) nos escaparates.
Mas quando se trata de negócios de milhões, são as multinacionais da imagem, das telecomunicações e da informática que detêm realmente o poder. E quem está no poder não gosta de misturas: a monarquia fica sempre muito bem nas fotografias, mas está em declínio, e por isso é exposta às objectivas dos repórteres em lares de luxo da terceira idade, como o Alexis, aos quais se tenta dar a dignidade devida a quem já reinou mas está no ocaso da vida e já não tem poder económico. Hoje o iPod vende mais que todos os produtos highend juntos. E o negócio dos americanos não é música - é números: rappers negros como Puff Daddy ou 50 Cent, que escrevem letras a criticar ferozmente o sistema que os alimenta e no qual chafurdam sem qualquer consciência social, ganham fortunas obscenas que esbanjam de forma ainda mais obscena. E digam lá: aquilo é música?
No Alexis, ano após ano, vejo as mesmas caras, apenas com mais rugas e com menos cabelos, no mesmo local, com a mesma conversa da treta, a ouvir a mesma música de sempre, demonstrando os mesmos modelos, agora na versão 'Mk qualquer coisa', em salas vazias. Quando está sol, a maior parte dos visitantes prefere ficar cá fora junto à piscina ao ar livre, a arrotar gases de coca-cola com os dedos lambuzados dos molhos coloridos de hambúrgueres requentados, criticando sons que não ouviram ou ouviram mal, enquanto os fabricantes tentam negociar com os jornalistas amadores presentes uma “review” (de preferência positiva) num site improvisado à pressa. Para chegar às páginas da Stereophile já fia mais fino, e é quase tão complicado como entrar no mundo da Fórmula 1, onde se exige, como condição sine qua non, ter um bom patrocinador. O ano passado, obrigaram-me a esperar à porta da sala da Audio Research, porque estava lá dentro Michael Fremer, um judeu bem falante e influente, que se veste como um dandy, e que não queria ser perturbado. Este ano tentaram fazer-me o mesmo por causa de outro crítico da Stereophile, Kalman Rubinson, também judeu, como são quase todos os críticos de áudio americanos, este menos vem vestido e menos bem falante, ao que respondi: não espero e não volto. Entrei logo, claro. Devem ter pensado que eu era árabe e podia ficar ofendido. É que eu moro em Alcabideche, uma terra portuguesa de origem árabe, cujo nome se pode ler no meu 'Press Badge'... Se há coisa que detesto é “a brand with an attitude”. Daquelas que, mesmo tendo a sala vazia, parece que nos estão a fazer um favor por nos deixar ouvir duas faixas de um CD, num sistema milionário, que só se vende porque ainda há tipos como eu que voam 10 000 quilómetros para informar os seus leitores que ele existe e se recomenda, excitando-lhes assim o desejo de posse. Dantes quem tinha esta atitude era a Cello, de Mark Levinson. Viu-se onde isso a levou. E a ele também. Acho que o nosso Manuel Dias, da Imacústica, era capaz de lhes ensinar uma coisa ou duas sobre relações humanas.
Quando se fala da CES de Las Vegas, o leitor associa o acontecimento ao “glamour” (a propósito: a palavra é inglesa, e não francesa, significa brilho, e lê-se “glémâ” e não “glámúr”, como erradamente pensam as nossas locutoras e as “socialaites” pindéricas). Mas não há nada de glamouroso, muito menos no St. Tropez, onde a única forma de atrair pessoas é oferecer um “barbecue” à borla. Único inconveniente: perde-se uma hora na bicha e ficamos a cheirar a fumo. Quando alguém se sentava ao nosso lado, numa sala fechada do Alexis ou nos transportes gratuitos pagos pela CES, ficávamos logo a saber que ele também tinha ido ao St. Tropez. Consta que a CES vai colocar detectores de cheiros à entrada: quem cheirar ao barbecue do 'The Show', não entra…
De resto, as salas do St. Tropez estavam às moscas. Quando eu entrava de câmara em punho com um ar atarefado, e eles me viam com o “badge” da Press ao peito, saltavam da cadeira como que impulsionados por uma mola, na remota esperança de que alguém, algures no mundo, não interessa onde, pudesse porventura vir a saber que eles existem.
Quando descobriam que eu vinha de Portugal (onde é que isso fica?...), o interesse passava a mera curiosidade (será que este gajo sabe que estas válvulas foram abençoadas num templo budista?, ná!...), mas a demonstração da ordem lá se fazia. Pelo sim, pelo não, nunca se sabe, não é?…
Eu acho que eles não fazem lá muito negócio, a única diferença entre estes fabricantes e os nossos distribuidores é que nunca dão parte de fraco. Enquanto os nossos se lamentam, que o mercado está péssimo, não se vende nada, o pessoal anda a gastar o que tem e o que não tem em viagens ao Brasil, plasmas e telemóveis topo de gama com câmara fotográfica e MP3, e blá, blá. Já para os americanos (bom, a maior parte dos “residentes” no St. Tropez são sinoamericanos) o negócio está sempre florescente: “Great show, we are very pleased with the interest shown by the press, and we have had more visitors this year than last year, things are looking good for us, blá, blá”.Estão a ver a cena? A diferença entre o pessimismo e o optimismo não está nas vendas, está na confiança que se aparenta ter nos produtos e na esperança de uma resposta positiva do mercado.
Isto é uma coluna de som a energia eólica. Juro!.. (da Alex Nolan Design, o mesmo fabricante da coluna solar)
Quanto à diferença entre o Alexis e o show “pirata” do St.Tropez, que fica logo ali ao lado, reside sobretudo na filosofia da demonstração. No Alexis, a maior parte são marcas bem cotadas no mercado, já distribuídas em todo o mundo, pelo que se aproveita para cativar os jornalistas para testes e os distribuidores de todo o mundo para comprarem os novos modelos apresentados em versão mock-up com seis meses de antecedência, mesmo quando eles ainda não conseguiram vender os anteriores.
No St. Tropez, explora-se o ritual, a crença e a superstição e alguns dos gurus lembram-me mais bruxos, adivinhos e cartomantes numa feira de magia negra que gurus audiófilos. Criam-se ambientes de luz e som propícios à meditação transcendental para ouvir diferenças entre cabos criogenizados e cabos vulgares; válvulas raras de formas estranhas; leitores-CD apertados em tornos; colunas com espanta-espíritos pendurados; cabos que parecem os balões alongados que os palhaços utilizam para fazer cisnes e burrinhos, que oferecem depois às crianças passantes na rua em dia de festa; colunas de cornetas retorcidas; líquidos milagrosos (também há tinto da Califórnia e malte da Escócia para “abrir” os ouvidos dos mais cépticos), gira-discos com pratos que pesam uma tonelada e demoram meia-hora a atingir a velocidade de cruzeiro, amplificadores de 2W com 15% de distorção à máxima potência nos extremos de frequência, etc.
Que por vezes se oiça aqui som de qualidade transcendental (as Cabasse La Sphère, por exemplo), só prova que devemos abordar o fenómeno áudio sempre com um espírito aberto e nunca fazer juízos prévios de valor. Eu regressei de Las Vegas mais tolerante e mais feliz e, tal como Sócrates (o filósofo grego, não o outro) cada vez me convenço mais que só sei que nada sei. Há outros que sem nunca terem saído do quintal já sabem tudo. Que sejam muito felizes também. Isto chega para todos…
Nota: Próximos episódios em Maio de 2006: Highend Show, Munique