Hotel Sheraton, Porto: houve muitos que foram pedir uma 'aparelhagem' ao Menino Jesus
De uma maneira geral, senti que havia menos entusiasmo este ano: uma sensação de déjà vu/ecouté, a que não é alheia a ausência de grandes novidades absolutas. Falava-se nas KEF Muon, afinal vieram as Reference. Contudo no sábado (no Domingo jogaram os 3 grandes em sequência - refiro-me ao futebol, claro), as salas estavam cheias e, na única demonstração sujeita a marcação prévia, a da Ajasom, as sessões esgotaram a capacidade do cinema improvisado. Eu próprio tive de esperar a minha vez, e assisti à demonstração, que não foi memorável, diga-se, de pé e encostado à parede - ou talvez por isso.
O público presente tende a ser o mesmo ano após ano, e já todos se conhecem uns aos outros. Não fora a diferença de idades, e dir-se-ia estarmos numa reunião para matar saudades de finalistas do Liceu dos anos 70 ou de um batalhão de infantaria da guerra de África, que se apresentam para confraternizar acompanhados pela namorada, a mulher e os filhos.
Acontece que este é o único público que existe, ao contrário do que possam pensar os distribuidores, e são ainda assim estas reuniões plurianuais que o mantêm coeso e interessado num fenómeno - o highend - que, por razões económicas e culturais, já não cativa as novas gerações, mais interessadas nos universos virtuais disponíveis na Internet, nem a classe média-alta emergente em épocas de crise, que se compraz antes nos jogos sociais de aparência veiculados pelos automóveis de luxo, as festas privadas, a moda exclusiva, as viagens a Phouket - sabe Deus com que dificuldades - isto para não falar noutros vícios de manutenção dispendiosa.
Tenho dúvidas que uma forte campanha publicitária veiculada pela televisão, com custos proibitivos, trouxesse mais público ao Highend 2007 - Porto. Mais gente, sim, mas não necessariamente a que interessa aos importadores: os bons estavam lá e estão já (bem) servidos, o povão está teso e o Fisco anda à caça dos outros. Ora o automóvel, a roupinha, (algumas) cirurgias plásticas e viagens (sempre de estudo e trabalho, claro), ainda há quem consiga incluir na declaração de impostos, as “aparelhagens” é que já exigiriam um contabilista engenhoso. Talvez na rubrica equipamento electrónico para educação musical de descendentes dependentes...
Também há os que só lá vão para exercitar os seus dotes de crítico amador, ou apenas para dizer mal selectivamente, valendo-se da Internet como meio de publicação e de pressão; e ainda há os que dizem bem de tudo, porque têm medo que os considerem “incultos”, logo incapazes de apreciar colunas de som como, por exemplo, as Nautilus, que estavam à partida cotadas como “as vedetas do circo audiófilo”.
Sobre as Nautilus e o seu tratador - o Alberto -, eu já escrevi praticamente tudo o que tinha a escrever. E nada do que ouvi agora no Porto me vai fazer mudar de opinião. Contudo, no áudio como no futebol, às vezes há surpresas: nem sempre ganha a melhor equipa. Basta que o craque esteja lesionado, por exemplo. Mas as claques só têm olhos para a sua equipa, mesmo quando está a jogar menos bem, e recusam-se a ouvir o óbvio.
HOJE HÁ CARACÓIS
A primeira vez que ouvi as Nautilus foi em Paris no Hotel Nikko, faz agora para aí uns dez anos, e não gostei do que ouvi. Achei que eram pouco expressivas e demasiado contidas no capítulo dinâmico. Do mesmo modo, prefiro um pratinho de caracóis com molho maldoso que os famosos “escargot Bourguinonne”. Ouvi-as no ano seguinte em Milão, creio, e já gostei mais: desta feita, contudo, soaram-me agressivas, porque o som estava muito alto. Foi o Alberto quem, no ISCTE, me ensinou a gostar delas.
Há algo em que as Nautilus são inultrapassáveis na minha experiência auditiva: na preservação temporal do invólucro harmónico que envolve os sons fundamentais. Neste particular, batem-se com as melhores colunas electrostáticas. Em 2004, escrevi sobre as Nautilus o seguinte:
O silêncio intersticial é fantasmagórico e a cauda de reverberação, o chamado «decay», chega a ser emocionante, em especial com música antiga e piano.
E ainda:
As Nautilus têm total ausência de colorações de caixa. Por isso talvez soem a ouvidos habituados ao tradicional «caldo colorido» da madeira como frias. Mas esta limpeza asséptica está prenhe de musicalidade e os graves são profundos e articulados.
Só há uma coisa que lhes aponto com muita mágoa minha: julguei ouvir um ligeiro «ringing» na gama média-alta típico dos altifalantes metálicos. Mas pode ter sido apenas um problema do registo original que as Nautilus se recusaram a esconder debaixo do tapete. Por outro lado, falta-lhes «escala». Quem já ouviu colunas de grande porte (ou até mesmo as BW 801 Nautilus) entende com facilidade o que quero dizer com isto.
E também:
Apesar da inegável qualidade do projecto Nautilus, sou incapaz de ouvir a Mãe-Caracol sem que a minha atenção se focalize no som. Sou sempre tentado a pensar em termos de graves, médios e agudos, mesmo quando o todo se organiza numa imagem dinâmica e coerente; mesmo quando o recorte e a resolução estão acima da média, ou talvez por isso: o cérebro é inundado por uma onda de agradável informação acústica que ilustra musicalmente a tão estranha quanto bela imagem do gigantesco caracol de cuja presença não conseguimos abstrair-nos. Até de olhos fechados sabemos que ele está lá! A teoria científica subjacente com base em estudos de biologia marítima e o rigor e engenho da sua implementação prática é incontornável no acto de audição. As Nautilus apesar do design surrealista, que Dali não desdenharia, são mais ciência que arte, e o som correspondente apela mais ao cérebro que ao coração.
No Porto, visitei a sala da Artaudio, no sábado e no Domingo, acompanhado pela minha esposa. Além da notável acuidade auditiva, sobretudo para os agudos, ela não sofre de preconceitos audiófilos, apesar de mais de 30 anos de vida em comum. O som estava muito baixo, e a selecção musical era no mínimo “defensiva”. Só tive de esperar alguns minutos por uma reacção: “O que é que se passa com o Alberto? Parece estar a jogar à defesa, normalmente nas demonstrações dele ouve-se música e não sons...e aquele quadro cor de laranja horroroso na parede distrai as pessoas em vez de as concentrar...”.
Eu também achei que ao môlho dos caracóis faltava tempero. O “decay” estava lá e aquela articulação dos graves só podia ser gerada no bojo de uma linha-de-transmissão infinita. A colocação dos sons no espaço negro do silêncio trazia-me à memória imagens do espaço sideral pontilhado de estrelas. Fechei os olhos (para não ter de olhar para o quadro e divagar sobre qual o significado obscuro da estranha máxima filosófica) e senti-me mergulhar numa imagem holográfica virtual. Foi então que ouvi o que me pareceu ser uma vibração. O tal “ringing”? Não, era algo de mais mecânico que não consegui identificar com precisão, porque o som estava muito baixo. Saí perturbado, no meio do coro de elogios de corredor à performance das Nautilus.
No Domingo, encontrei o Alberto que me confessou: “Já resolvi o problema da vibração do altifalante de médios, podes lá ir hoje que vais gostar mais...agora já posso puxar por elas”. “Mas eu não te disse nada...” adiantei. “Pois não, mas eu percebi que tu tinhas ouvido...”, retorquiu o Alberto.
De facto, contou-me ele depois, as Nautilus tinham sofrido maus tratos no transporte, e um dos altifalantes tinha chegado em mau estado. A B&W não tinha conseguido fazer chegar outro altifalante a tempo e o Alberto resolvera o problema reforçando o amortecimento para eliminar o efeito de “bottoming”. No Domingo, ninguém diria que as Nautilus estavam a jogar lesionadas. São assim, os grandes jogadores: fazem das fraquezas forças. São assim os grandes homens como o Alberto...