A arte de gravar no espaço
São os técnicos da Decca, e não Todd Garfinkle, os verdadeiro mestres do “espaço” acústico, enquanto caldo de cultura dos sons. Ao contrário de Garfinkle, não estão interessados no ar e na reverberação natural em si, utilizam-nas como veículo de transmissão de deixas ambientais que nos permitem estabelecer correctas relações de tempo e espaço, recriando um palco sonoro estável e verosímil, povoado por seres concretos e definidos, graças à técnica de captação “Decca-tree”, um conjunto de três microfones omnidireccionais (a Decca é avara em informações e não identifica nos discos os engenheiros nem os microfones, mas talvez sejam Calrec Soundfield) montados num suporte em T colocado uns metros acima e atrás da cabeça do maestro, sendo que os correspondentes ao canal direito e esquerdo estão afastados entre si dois metros (a distância ideal para colocar também a suas colunas de som) e um microfone de “enchimento” central (a la Living Stereo), este avançado cerca de um metro em relação aos dois anteriores.
Em Saint Eustache reza-se ao Deus do som
Interior da Igreja de St. Eustache
As famosas gravações da Decca, na Igreja de Saint Eustache, com Dutoit à frente da Orquestra Sinfónica de Montreal, são do melhor que se fez em termos de transparência, dinâmica, realismo tímbrico e ilusão de profundidade. Tenho vários e utilizei-os a todos com redobrado prazer neste teste.
Holst, The Planets, um disco raro e esgotado desde 2004, mas que é agora possível encomendar na Amazon
Nomeadamente a “Fantástica”, de Berlioz; “Os Planetas”, de Holst; e os “Pinheiros de Roma”, de Ottorino Respighi, com a mais espectacular “aproximação” do exército consular, marchando pela Via Ápia, que culmina na “ascensão triunfal ao Capitólio”, alguma vez registada em CD. Os coloridos instrumentais e contrastes dinâmicos são de arrepiar e o sentido melódico só está ao alcance dos grandes maestros e sistemas de som.
Com material deste, a Orquestra Filarmónica de Alcabideche, onde vivo, composta por: Esoteric X-01 D2 (Sony X-777ES+DAC64), ARC Ref 3/110, Sonus Faber Elipsa, cabos Nordost Valhalla, Transparent e Siltech, foi aplaudida de pé. No final, senti-me Dutoit!...
Assim como me senti de novo com 20 anos ao ouvir a colectânea “Love” dos Beatles, especialmente editada para o espectáculo do Cirque du Soleil, em cena no Mirage, de Las Vegas, a que assisti maravilhado em Janeiro. Compre este disco e oiça os Beatles como nunca os ouviu.
Redefinição é chavão gasto
O duo ARC Ref 3/110 não redefine o highend (“redefinição” é um chavão já gasto), mas altera a minha perspectiva cínica sobre uma marca que, sendo a válvulas, ultimamente me soava a transístores. Not any more. ARC is back to the good old times.
Sem perder as características de high definition que lhe servem de bandeira, o Ref 3 é de uma luminosidade intensa e neutra, talvez porque Bill Johnson decidiu finalmente optar pelas 6H30 e cortar com a realimentação negativa, ao bom estilo dos “ART”, de Lew Johnson.
Tem válvulas, ergo soa “a válvulas”
O 110 não desilude neste particular: soa “valvular”, com todas as vantagens e defeitos que isso implica: médios melífluos e prenhes de vida (o efeito estéreo tem contornos holográficos: a faixa “Because” (the world is round...) na abertura de “Love”, cantada a capella, com a técnica única de harmonizing vocal que distingue os Beatles, tem uma maravilhosa envolvência física e emocional , em especial com o Ref 3 na linha da frente); já os agudos são “substantivos” e, por isso, difíceis de ...eh...adjectivar.
O nascimento de Vénus de Sandro Botticelli
Quanto aos graves, são sensuais, apresentando-se com a textura macia do ventre de uma donzela do Renascimento, no tempo em que a nobre função (gerar filhos) era mais importante que a forma (apenas gera em nós o desejo de os fazer). Notável é a noção de espaço e de tempo (ritmo). Aí sim, o 110 enquadra-se no conceito abrangente de modernidade audiófila.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Também no áudio os gostos mudam com as épocas, e hoje os graves seguem a moda do body pumping: barriguinha lisa e glúteos perfeitos. O som fofinho, com “chicha harmónica”, passou a ser designado pelo epíteto genérico e quase pejorativo de “redondinho”, como se as “redondinhas” não fossem melhores que as “quadradonas”...
Aliás, a pele muito esticada (agora refiro-me aos tambores, claro) afecta no sorriso a expressão dos sentimentos e afectos: as fundamentais dos impactes percutivos podem soar excitantes, sem dúvida, mas não estão completos sem a deliciosa geleia de harmónicos frescos que dão forma aos sons graves sem os engordar. Às calorias típicas da incandescência em ambiente de vácuo, o 110 junta as proteínas sonoras, e o resultado final traduz-se numa reconfortante sensação de calor humano e força anímica.
Nesta liturgia em honra do deus do Som, o 110 foi o diligente acólito das belas Sonus Faber Elipsa, raparigas fogosas, se bem que algo caprichosas: sendo muito eficientes, não são a pêra-doce que aparentam ser, em especial no grave onde a impedância ronda os 2 Ohm. Mesmo assim, nunca as deixaram à míngua, nem na presença do explosivo Billy Cobham. Significa isto que o 110 tem pano para mangas? Eu não arriscava amancebá-lo com colunas de baixa impedância e feitio irascível.
Se ficar de tal forma preso ao sortilégio deste som que a simples hipótese de voltar aos transístores lhe cause desconforto auditivo, e sente que precisa de mais potência, opte pelos monoblocos 210, ou em desespero de causa arrisque o investimento no 610T (vertical), apresentado na CES 2006 - o circuito é o mesmo, o número de válvulas e o calor é que aumentam - o preço também...
O proibido e a transgressão
O 110 chegou às minhas mãos muito antes do Ref 3, sendo neste interim substituído no assédio às Elipsa pelo competente McIntosh C2200 (valvulado por mestre José Martins, da JM Audio).
Gostei do que ouvi mas faltava-me o tal “click”, em especial depois da forte expectativa criada pela euforia da leitura de opiniões alheias. Depois pensei: será o C2200 “fully balanced”? É que o 110 tem uma particularidade curiosa: para simplificar o circuito Johnson construiu um amplificador balanceado com duas novidades: seguidor de cátodo e ausência de “phase splitter”. Na prática, isto não impede mas desaconselha o relacionamento extra conjugal com prévios não-balanceados. Quando recebe sinais pseudo-balanceados, o Ref 3 passa ao modo tríodo contra-natura, debitando menos de um terço da potência. Em princípio, som de tríodo devia ser melhor (veja-se o caso paradigmático do Prima Luna Dialogue), mas o 110 é um push-pull puro, e soa nesta configuração proibida algo anémico. Portanto, se está a pensar enganá-lo com sinais pseudo balanceados ou cabos RCA/XLR, pense duas vezes.
Transfiguração em palco
Em parceria com o Ref 3, o 110 transfigurou-se, colocando finalmente toda a potência disponível no chão, isto para utilizar a gíria automobilística. Não tem o elevado poder de arranque dos Ferraris e Porsches do áudio, é mais um Bentley com motor V8: não chega tão depressa aos...eh... 110, mas logo que atinge a velocidade de cruzeiro tem classe, conforto e segurança. O acelerador do Ref 3 (volume) tem um comportamento estranho: não obedece de imediato à ordem de acelerar. Na zona de trabalho mais utilizada (40-50), fá-lo em passos curtos e seguros.
Se é adrenalina que procura, a Imacústica tem Krells com os quais pode fazer um test-drive para lá dos limites da legalidade acústica. Aí, vale tudo!...
4 ou 8 Ohm eis a questão
Ao contrário de Kessler (8 Ohm) e Colloms (16 Ohm), eu preferi ouvir o 110 pela saída de 4 Ohm: o grave perde em tensão o que ganha em...eh... intenção, no sentido em que a sua relação com os registos médios se torna assim menos física mas mais insinuante.
A performance do 110 não pode ser dissociada do Ref 3
Embora a sua performance não possa ser aqui dissociada do REF 3 (o ganho moderado pode dar uma ideia inicial errada de alguma letargia), o 110 não soa poderoso, no sentido visceral do termo, contudo soa grande (o palco sonoro é amplo e expansivo), passe a aparente contradição.
No palco, os moradores da casa da música não surgem nús à janela, como quando são focados pela mira telescópica dos transístores; nem por uma daquelas lentes macro que focam todas as minudências das asas da borboleta e se esquecem da flor onde ela está pousada. A perspectiva que nos oferece é de grande angular de 35mm: mais abrangente que a lente “natural” de 50mm, conferindo aos músicos um pouco mais de espaço, mas mantendo tudo em foco nos diferentes planos, desde o proscénio ao fundo do cenário, sem a distorção geométrica associada às lentes de 24 mm.
Oiça-se o sonho de uma noite de sabbat, da Fantástica, de Berlioz. Alucinado pelo ópio o herói assiste ao seu próprio funeral que se transforma numa orgia pontuada pelo som grotesco do clarinete que dá o mote para o delírio de autodestruição romântica que se segue. Lá longe ouve-se o som fúnebre do sino no campanário da igreja. As tubas e os fagotes primeiro, depois os trombones e as trompas aceleram o ritmo até ao final apocalíptico. Tudo sob uma luz crepuscular que, apesar disso, não deixa cair um pingo de som no vazio da escuridão. A Decca e a sua equipa não o permitem, Bill Johnson também não.
A iluminação é, por consequência, muito uniforme até mesmo nos “cantos” da imagem, lá no fundo do palco, onde se conseguem distinguir ainda seres de “carne e osso”, algo de muito raro na presença de amplificadores a válvulas, que tendem a iluminar a acção que se desenrola num zona central ampla - o ground-zero acústico -, enquanto os limites exteriores, onde deambulam zombies gasosos, estão quase sempre envoltos numa ligeira penumbra electrónica, que se vai tornando mais densa à medida que a distância virtual aumenta.
Política de transparência
Os meus ilustres colegas, cujos testes estão também disponíveis na página da Imacústica para consulta, classificaram unanimemente este ambiente acústico como “transparente”. Ora até o palco do Prima Luna Dialogue soa mais transparente, pelo menos mais claro, o que, admito, não é a mesma coisa, pois o equilíbrio tonal, ao favorecer os registos médio-altos, torna o Dialogue subjectivamente mais informativo.
Informação de qualidade
É minha convicção que a classe do ARC REF 110 não reside tanto na quantidade de informação disponível, apesar de tudo mais do que suficiente para justificar a chancela de “alta definição”, como na qualidade dessa informação.E passo a explicar:
O que distingue os jornais (e os amplificadores) de referência não é a informação em si, qualquer tablóide a pode publicar, é antes o modo como é tratada e apresentada.
Lidas à luz do 110, as “notícias” são iguais (os audiófilos repetem sempre as mesmas faixas ad nauseam), só que o conteúdo informativo parece ganhar agora lógica e coerência internas, porque as associações rítmicas, os esclarecimentos dinâmicos, o enquadramento tonal das múltiplas acções tímbricas e a imensa profusão de elementos harmónicos estão organizados de molde a permitir ao ouvinte analisar o processo musical em curso sob uma perspectiva nova e diferente.
É como se alguém nos explicasse a política cultural (social, fiscal, de saúde, etc.) do Governo de tal forma que tudo fizesse finalmente sentido. Não são as premissas acústicas que são agora mais claras, é o contexto harmónico em que estão expostas que funciona como corolário lógico e torna a conclusão musical tão óbvia quanto fácil de assimilar pelo cérebro.
O pulsar da vida
O ARC Ref 110 dá-nos a sensação rara num amplificador a válvulas de ouvir e sentir a respiração e o pulsar de um registo de pop/rock/clássico ao vivo, que não deve ser confundido com a energia crua e explosiva do acontecimento em si, só possível de reproduzir com os 60 amperes de amplificadores tipo Krell.
Dar à luz
Retrato de Giovanni Arnolfini e esposa por Jan van Eyck (1434).
A força das válvulas emana assim, não da potência sonora, mas da mística associada à luz que irradiam, que não deve confundir-se com a energia da electricidade. Dar à luz não é o mesmo que acender a luz. Quem não perceber este simples aforismo filosófico deve abster-se de comprar o 110.
Se no tempo de Aristóteles houvesse amplificadores a válvulas, por certo ele nunca teria ensinado que “a natureza odeia o vácuo”. O vácuo deixou de ser a “ausência de tudo” da filosofia grega, para passar a ser o lugar “de todas as coisas”, onde os electrões se reproduzem livres e felizes sob os auspícios de Bill Z. Johnson.
Há muito tempo que não tinha tanto prazer em ouvir um amplificador Audio Research. Quanto ao Reference 3, é apenas o melhor prévio da marca que já testei e vou utilizá-lo nos testes seguintes, porque o considero como o principal responsável pela elevada classificação obtida pelo 110: 18 valores. Com o C2200, ter-se-ia ficado pelo 16, o que significa que o Ref 3 leva um 20 pela performance sónica com distinção e louvor.
Aplausos, com público e orquestra de pé, e três encores. Bravo, maestros Dutoit e Johnson! Vivam Mariza e os Beatles também...
São os técnicos da Decca, e não Todd Garfinkle, os verdadeiro mestres do “espaço” acústico, enquanto caldo de cultura dos sons. Ao contrário de Garfinkle, não estão interessados no ar e na reverberação natural em si, utilizam-nas como veículo de transmissão de deixas ambientais que nos permitem estabelecer correctas relações de tempo e espaço, recriando um palco sonoro estável e verosímil, povoado por seres concretos e definidos, graças à técnica de captação “Decca-tree”, um conjunto de três microfones omnidireccionais (a Decca é avara em informações e não identifica nos discos os engenheiros nem os microfones, mas talvez sejam Calrec Soundfield) montados num suporte em T colocado uns metros acima e atrás da cabeça do maestro, sendo que os correspondentes ao canal direito e esquerdo estão afastados entre si dois metros (a distância ideal para colocar também a suas colunas de som) e um microfone de “enchimento” central (a la Living Stereo), este avançado cerca de um metro em relação aos dois anteriores.
Em Saint Eustache reza-se ao Deus do som
Interior da Igreja de St. Eustache
As famosas gravações da Decca, na Igreja de Saint Eustache, com Dutoit à frente da Orquestra Sinfónica de Montreal, são do melhor que se fez em termos de transparência, dinâmica, realismo tímbrico e ilusão de profundidade. Tenho vários e utilizei-os a todos com redobrado prazer neste teste.
Holst, The Planets, um disco raro e esgotado desde 2004, mas que é agora possível encomendar na Amazon
Nomeadamente a “Fantástica”, de Berlioz; “Os Planetas”, de Holst; e os “Pinheiros de Roma”, de Ottorino Respighi, com a mais espectacular “aproximação” do exército consular, marchando pela Via Ápia, que culmina na “ascensão triunfal ao Capitólio”, alguma vez registada em CD. Os coloridos instrumentais e contrastes dinâmicos são de arrepiar e o sentido melódico só está ao alcance dos grandes maestros e sistemas de som.
Com material deste, a Orquestra Filarmónica de Alcabideche, onde vivo, composta por: Esoteric X-01 D2 (Sony X-777ES+DAC64), ARC Ref 3/110, Sonus Faber Elipsa, cabos Nordost Valhalla, Transparent e Siltech, foi aplaudida de pé. No final, senti-me Dutoit!...
Assim como me senti de novo com 20 anos ao ouvir a colectânea “Love” dos Beatles, especialmente editada para o espectáculo do Cirque du Soleil, em cena no Mirage, de Las Vegas, a que assisti maravilhado em Janeiro. Compre este disco e oiça os Beatles como nunca os ouviu.
Redefinição é chavão gasto
O duo ARC Ref 3/110 não redefine o highend (“redefinição” é um chavão já gasto), mas altera a minha perspectiva cínica sobre uma marca que, sendo a válvulas, ultimamente me soava a transístores. Not any more. ARC is back to the good old times.
Sem perder as características de high definition que lhe servem de bandeira, o Ref 3 é de uma luminosidade intensa e neutra, talvez porque Bill Johnson decidiu finalmente optar pelas 6H30 e cortar com a realimentação negativa, ao bom estilo dos “ART”, de Lew Johnson.
Tem válvulas, ergo soa “a válvulas”
O 110 não desilude neste particular: soa “valvular”, com todas as vantagens e defeitos que isso implica: médios melífluos e prenhes de vida (o efeito estéreo tem contornos holográficos: a faixa “Because” (the world is round...) na abertura de “Love”, cantada a capella, com a técnica única de harmonizing vocal que distingue os Beatles, tem uma maravilhosa envolvência física e emocional , em especial com o Ref 3 na linha da frente); já os agudos são “substantivos” e, por isso, difíceis de ...eh...adjectivar.
O nascimento de Vénus de Sandro Botticelli
Quanto aos graves, são sensuais, apresentando-se com a textura macia do ventre de uma donzela do Renascimento, no tempo em que a nobre função (gerar filhos) era mais importante que a forma (apenas gera em nós o desejo de os fazer). Notável é a noção de espaço e de tempo (ritmo). Aí sim, o 110 enquadra-se no conceito abrangente de modernidade audiófila.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Também no áudio os gostos mudam com as épocas, e hoje os graves seguem a moda do body pumping: barriguinha lisa e glúteos perfeitos. O som fofinho, com “chicha harmónica”, passou a ser designado pelo epíteto genérico e quase pejorativo de “redondinho”, como se as “redondinhas” não fossem melhores que as “quadradonas”...
Aliás, a pele muito esticada (agora refiro-me aos tambores, claro) afecta no sorriso a expressão dos sentimentos e afectos: as fundamentais dos impactes percutivos podem soar excitantes, sem dúvida, mas não estão completos sem a deliciosa geleia de harmónicos frescos que dão forma aos sons graves sem os engordar. Às calorias típicas da incandescência em ambiente de vácuo, o 110 junta as proteínas sonoras, e o resultado final traduz-se numa reconfortante sensação de calor humano e força anímica.
Nesta liturgia em honra do deus do Som, o 110 foi o diligente acólito das belas Sonus Faber Elipsa, raparigas fogosas, se bem que algo caprichosas: sendo muito eficientes, não são a pêra-doce que aparentam ser, em especial no grave onde a impedância ronda os 2 Ohm. Mesmo assim, nunca as deixaram à míngua, nem na presença do explosivo Billy Cobham. Significa isto que o 110 tem pano para mangas? Eu não arriscava amancebá-lo com colunas de baixa impedância e feitio irascível.
Se ficar de tal forma preso ao sortilégio deste som que a simples hipótese de voltar aos transístores lhe cause desconforto auditivo, e sente que precisa de mais potência, opte pelos monoblocos 210, ou em desespero de causa arrisque o investimento no 610T (vertical), apresentado na CES 2006 - o circuito é o mesmo, o número de válvulas e o calor é que aumentam - o preço também...
O proibido e a transgressão
O 110 chegou às minhas mãos muito antes do Ref 3, sendo neste interim substituído no assédio às Elipsa pelo competente McIntosh C2200 (valvulado por mestre José Martins, da JM Audio).
Gostei do que ouvi mas faltava-me o tal “click”, em especial depois da forte expectativa criada pela euforia da leitura de opiniões alheias. Depois pensei: será o C2200 “fully balanced”? É que o 110 tem uma particularidade curiosa: para simplificar o circuito Johnson construiu um amplificador balanceado com duas novidades: seguidor de cátodo e ausência de “phase splitter”. Na prática, isto não impede mas desaconselha o relacionamento extra conjugal com prévios não-balanceados. Quando recebe sinais pseudo-balanceados, o Ref 3 passa ao modo tríodo contra-natura, debitando menos de um terço da potência. Em princípio, som de tríodo devia ser melhor (veja-se o caso paradigmático do Prima Luna Dialogue), mas o 110 é um push-pull puro, e soa nesta configuração proibida algo anémico. Portanto, se está a pensar enganá-lo com sinais pseudo balanceados ou cabos RCA/XLR, pense duas vezes.
Transfiguração em palco
Em parceria com o Ref 3, o 110 transfigurou-se, colocando finalmente toda a potência disponível no chão, isto para utilizar a gíria automobilística. Não tem o elevado poder de arranque dos Ferraris e Porsches do áudio, é mais um Bentley com motor V8: não chega tão depressa aos...eh... 110, mas logo que atinge a velocidade de cruzeiro tem classe, conforto e segurança. O acelerador do Ref 3 (volume) tem um comportamento estranho: não obedece de imediato à ordem de acelerar. Na zona de trabalho mais utilizada (40-50), fá-lo em passos curtos e seguros.
Se é adrenalina que procura, a Imacústica tem Krells com os quais pode fazer um test-drive para lá dos limites da legalidade acústica. Aí, vale tudo!...
4 ou 8 Ohm eis a questão
Ao contrário de Kessler (8 Ohm) e Colloms (16 Ohm), eu preferi ouvir o 110 pela saída de 4 Ohm: o grave perde em tensão o que ganha em...eh... intenção, no sentido em que a sua relação com os registos médios se torna assim menos física mas mais insinuante.
A performance do 110 não pode ser dissociada do Ref 3
Embora a sua performance não possa ser aqui dissociada do REF 3 (o ganho moderado pode dar uma ideia inicial errada de alguma letargia), o 110 não soa poderoso, no sentido visceral do termo, contudo soa grande (o palco sonoro é amplo e expansivo), passe a aparente contradição.
No palco, os moradores da casa da música não surgem nús à janela, como quando são focados pela mira telescópica dos transístores; nem por uma daquelas lentes macro que focam todas as minudências das asas da borboleta e se esquecem da flor onde ela está pousada. A perspectiva que nos oferece é de grande angular de 35mm: mais abrangente que a lente “natural” de 50mm, conferindo aos músicos um pouco mais de espaço, mas mantendo tudo em foco nos diferentes planos, desde o proscénio ao fundo do cenário, sem a distorção geométrica associada às lentes de 24 mm.
Oiça-se o sonho de uma noite de sabbat, da Fantástica, de Berlioz. Alucinado pelo ópio o herói assiste ao seu próprio funeral que se transforma numa orgia pontuada pelo som grotesco do clarinete que dá o mote para o delírio de autodestruição romântica que se segue. Lá longe ouve-se o som fúnebre do sino no campanário da igreja. As tubas e os fagotes primeiro, depois os trombones e as trompas aceleram o ritmo até ao final apocalíptico. Tudo sob uma luz crepuscular que, apesar disso, não deixa cair um pingo de som no vazio da escuridão. A Decca e a sua equipa não o permitem, Bill Johnson também não.
A iluminação é, por consequência, muito uniforme até mesmo nos “cantos” da imagem, lá no fundo do palco, onde se conseguem distinguir ainda seres de “carne e osso”, algo de muito raro na presença de amplificadores a válvulas, que tendem a iluminar a acção que se desenrola num zona central ampla - o ground-zero acústico -, enquanto os limites exteriores, onde deambulam zombies gasosos, estão quase sempre envoltos numa ligeira penumbra electrónica, que se vai tornando mais densa à medida que a distância virtual aumenta.
Política de transparência
Os meus ilustres colegas, cujos testes estão também disponíveis na página da Imacústica para consulta, classificaram unanimemente este ambiente acústico como “transparente”. Ora até o palco do Prima Luna Dialogue soa mais transparente, pelo menos mais claro, o que, admito, não é a mesma coisa, pois o equilíbrio tonal, ao favorecer os registos médio-altos, torna o Dialogue subjectivamente mais informativo.
Informação de qualidade
É minha convicção que a classe do ARC REF 110 não reside tanto na quantidade de informação disponível, apesar de tudo mais do que suficiente para justificar a chancela de “alta definição”, como na qualidade dessa informação.E passo a explicar:
O que distingue os jornais (e os amplificadores) de referência não é a informação em si, qualquer tablóide a pode publicar, é antes o modo como é tratada e apresentada.
Lidas à luz do 110, as “notícias” são iguais (os audiófilos repetem sempre as mesmas faixas ad nauseam), só que o conteúdo informativo parece ganhar agora lógica e coerência internas, porque as associações rítmicas, os esclarecimentos dinâmicos, o enquadramento tonal das múltiplas acções tímbricas e a imensa profusão de elementos harmónicos estão organizados de molde a permitir ao ouvinte analisar o processo musical em curso sob uma perspectiva nova e diferente.
É como se alguém nos explicasse a política cultural (social, fiscal, de saúde, etc.) do Governo de tal forma que tudo fizesse finalmente sentido. Não são as premissas acústicas que são agora mais claras, é o contexto harmónico em que estão expostas que funciona como corolário lógico e torna a conclusão musical tão óbvia quanto fácil de assimilar pelo cérebro.
O pulsar da vida
O ARC Ref 110 dá-nos a sensação rara num amplificador a válvulas de ouvir e sentir a respiração e o pulsar de um registo de pop/rock/clássico ao vivo, que não deve ser confundido com a energia crua e explosiva do acontecimento em si, só possível de reproduzir com os 60 amperes de amplificadores tipo Krell.
Dar à luz
Retrato de Giovanni Arnolfini e esposa por Jan van Eyck (1434).
A força das válvulas emana assim, não da potência sonora, mas da mística associada à luz que irradiam, que não deve confundir-se com a energia da electricidade. Dar à luz não é o mesmo que acender a luz. Quem não perceber este simples aforismo filosófico deve abster-se de comprar o 110.
Se no tempo de Aristóteles houvesse amplificadores a válvulas, por certo ele nunca teria ensinado que “a natureza odeia o vácuo”. O vácuo deixou de ser a “ausência de tudo” da filosofia grega, para passar a ser o lugar “de todas as coisas”, onde os electrões se reproduzem livres e felizes sob os auspícios de Bill Z. Johnson.
Há muito tempo que não tinha tanto prazer em ouvir um amplificador Audio Research. Quanto ao Reference 3, é apenas o melhor prévio da marca que já testei e vou utilizá-lo nos testes seguintes, porque o considero como o principal responsável pela elevada classificação obtida pelo 110: 18 valores. Com o C2200, ter-se-ia ficado pelo 16, o que significa que o Ref 3 leva um 20 pela performance sónica com distinção e louvor.
Aplausos, com público e orquestra de pé, e três encores. Bravo, maestros Dutoit e Johnson! Vivam Mariza e os Beatles também...