Retira-se da capa com dois dedos leves, em respeitoso silêncio, qual hóstia sagrada no acto litúrgico. Colocado o disco no prato, faz-se descer lentamente sobre ele o braço, apontando com precisão cirúrgica a agulha, que segue depois pelo tortuoso caminho da espiral hipnótica, lavrando sons enterrados nos sulcos da superfície ondulante, numa fritura branda e estranha para quem já nasceu na era digital.
A arte de baixar o braço do gira-discos devia ter um capítulo na Ars Amandi, de Ovídio. Quando a agulha penetra a espira em profundidade, inicia-se o coito musical, que pode durar apenas o tempo de uma faixa ou um lado completo: A ou B. Virar o disco tem um efeito de suspensão narrativa, um sentimento de puro gozo de antecipação, que se perdeu com o “coitus ininterruptus” do CD.
Satisfeito o desejo musical, o disco continua a girar, o braço pousado em lânguido abandono, mesmo quando a música já deixou de se ouvir: os puristas rejeitam os mecanismos de elevação automática. O amante fiel não gosta de abandonar a alcova sem uma última manifestação de carinho e limpa carinhosamente a agulha das trovas do tempo que passou.
Os gira-discos não têm a função “repeat”: cada audição de um LP é pois um acto consciente e voluntário. Os rituais cumprem-se na repetição de gestos sagrados e imutáveis, escreveu Lèvy-Strauss. No CD a música é apenas uma complexa trama de números cabalísticos: não há contacto físico entre a agulha de luz e o disco; e até o próprio acto de reprodução é regulado à distância por controlo remoto e asséptico: não há desgaste, nem risco, no duplo sentido de riscar e arriscar. É preciso tocar para compreender, ensinava Roland Barthes nos Fragmentos do Discurso Amoroso.
Eis, pois, porque há-de existir sempre quem prefira arriscar sofrer os efeitos perversos da electricidade estática, o desespero dos empenos ou a angústia da morte anunciada das espiras, em troca do prazer físico de ouvir e coleccionar LPs raros, que paradoxalmente se vão assim da lei da morte libertando.
No LP a música é representada no tempo pela actuação de uma bailarina em pontas de diamante, que evolui, ao ritmo de 33 rpm, sobre a superfície ondulante do disco. Os gira-discos são relógios analógicos: é o espaço percorrido que determina o tempo - o que já passou e o que ainda falta passar. O leitor-CD funciona como um relógio digital no qual o tempo é uma mera representação numérica.
Enquanto no analógico o tempo existe em função do espaço, no digital só o tempo existe - daí a importância da precisão do “clock” na performance dos leitores-CD. Ora o tempo, per si, sem o espaço, não passa de uma abstracção matemática.
O CD foi lançado no mercado com o arrogante slogan “perfect sound forever”. Passados apenas 20 anos, está prestes a ser substituído. Com ele cai também o mito da eterna juventude. O LP vai continuar vivo e chegar aos 100 anos, vestido de preto para poder assistir ao funeral do CD: gasta-se, risca-se, fica empenado e a voz perde claridade, quando o catarro impertinente da poeira se insinua na inteligibilidade do discurso. Et pour cause, o LP soará sempre mais natural que o CD, mais humano. Pura analogia?...