Com a idade tendo a tornar-me mais tolerante. Houve uma altura em que pensava como Oscar Wilde: só o melhor me satisfazia. Wilde esteve preso e morreu cedo. Embora eu tenha também publicado um artigo intitulado De Profundis, nunca fui dentro, e ainda por cá ando, portanto, é sinal que o 302 me satisfaz plenamente.
Quando me sinto nostálgico, ligo o Prima Luna Dialogue a válvulas, e ligo-me à música, desligando-me dele. O 302 é diferente: é um instrumento útil de trabalho (e de prazer). Não sofre do stress que aflige os outros amplificadores com os problemas que possam surgir a jusante ou a montante: pode-se sempre confiar nele para cumprir os objectivos e chegar a bom porto. A resposta em frequência não se desvia um milímetro da rota traçada.
Para além do prestígio da marca e da qualidade de construção, há algo que distingue de imediato os amplificadores Krell: a sua qualidade de som, personalizada mas excelente em qualquer circunstância (e é aqui que reside o busílis da questão: a descer todos os santos ajudam...), revelando-se praticamente imune às dificuldades colocadas pelas colunas e pelo programa musical, motivo por que são tão utilizados pela crítica mundial que tem regularmente de testar colunas difíceis (estou a lembrar-me das Martin Logan, cujo painel electrostático tem uma impedância de 0,5 ómios aos 20kHz!). Outra singularidade é a tecnologia CAST, um cordão umbilical onde flui corrente no lugar da tensão.
O 302 é um amplificador estéreo de 300W de potência, que aumenta na razão directa da descida de impedância. A fonte de alimentação sobredimensionada transforma-o num monstro de força praticamente ilimitada, que é garantida por um toroidal de 3kW, 4 pontes rectificadoras de 35 amperes e 110 000 microfarads de capacidade na filtragem! E não é só no papel. Nunca em circunstância alguma atingi o ponto de clipping audível. Os leitores podem informar-se sobre todas as características técnicas da série Evolution na excelente página da Imacústica ou no pdf da brochura que publicamos nos Media.
Tudo bons rapazes
Nada melhor para testar o 302 que um conjunto completo Krell, composto pelo supremo luxo de um prévio de duplo chassis Evolution 202 e o leitor CD/SACD Evolution 505. Como termo de comparação, utilizei um prévio McIntosh C2200 “revalvulado” por José Martins, da JM Audio, e um velhinho leitor CD/SACD Sony XA777es, acolitado pelo Chord DAC64.
Quanto às colunas, ouviram-se ao longo de um período alargado as Monitor Audio PL300 e 100, as Sonus sFaber Concertino e as Martin Logan Spire. No caso destas últimas, a fama dos graves Krell é redundante, pois são gravactivas, embora respondam à qualidade do sinal do amplificador externo que as alimenta. Weird but true.
A qualidade do som de um conjunto Krell deste gabarito está muitos furos acima da média da maior parte dos equipamentos highend. Digamos que 90% daquilo que o 302 faz é inatacável, qualquer que seja a abordagem: técnica ou musical. E que esses 90% são mais que suficientes para satisfazer a 100% mesmo o mais exigente dos audiófilos. Os restantes 10% dependem mais da sinergia que da energia. Como crítico, tinha de aproveitar essa variável para não tornar este teste em mais um longo elogio a uma marca à qual estou ligado por afinidade electiva desde os primórdios da minha carreira (ver testes em Media, incluindo um teste ao duo KRC-2/KSA-100S, publicado em 5 páginas (!), na revista Audio de Junho de 1993 e estilização do anúncio ao KSA100S no topo da página).
Tal como John Atkinson confessou um dia, eu era virgem em áudio até ouvir um Krell à alimentar umas Apogee. Foi nesse dia que me converti à krellomania...
Longe vão os tempos em que os Krell eram construídos como tanques de guerra em alumínio e aço, com um espesso painel frontal, com manípulos, que mais pareciam pára-choques de jipes do Paris-Dakar, e dissipadores rápa-canelas.
Em certa medida, a caixa, com excepção do painel, que agora faz parte de um todo, voltou às origens, ao tempo do saudoso KSA 100 II, o meu primeiro brinquedo Krell.
Só que na altura eram precisas ventoinhas para arrefecer os ânimos da Classe A, e hoje recorre-se ao engenhoso “plateau biasing”, que só liga o turbo quando ele faz de facto falta.
Será a Krell do século XXI uma fera amansada? Esta dúvida metódica foi o ponto de partida para a minha análise filosófica.
O instinto animal, a ferocidade, o poder de ataque, a velocidade, o apetite voraz de electricidade estão lá, qual pantera negra com coleira de diamantes passeando-se em apartamento de luxo como animal de estimação, impondo respeito e admiração às visitas. Não admira que Dan D’Agostino tenha imposto que os Krells Evolution se auto monitorizem constantemente, fazendo um diagnóstico do seu funcionamento, não vá o diabo tecê-las...
Apesar de terem mantido todas as características que os tornaram famosos na comunidade audiófila, os Krell Evolution são agora amplificadores mais sociáveis, aceites até por esposas que antes ficavam horrorizadas pelo perigo que constituíam as lâminas afiadas dos dissipadores, ameaçando, por esta ordem de importância: a prole gatejante, as canelas e as meias de seda. Continuam a ser fontes de calor apreciável mas até a ASAE e a DECO os recomendariam para uso doméstico tantos são os sistema de protecção contra acidentes, incluindo um que me chateia que é não poder utilizar bananas – só forquilhas...
Depois de uma década em que jogou com a claridade e a presença para conferir ao som uma falsa ilusão de maior transparência, a Krell parece ter voltado ao velho som do tempo das “ventoinhas”: poderoso e profundo como sempre, sem medo de descer ao centro da terra para tocar a lava incandescente das oitavas inferiores; mas agora mais acolhedor para o elemento humano, que habita primordialmente os registos médios, onde a resolução é muito mais elevada.
Os Krells nunca foram agressivos. O que talvez houvesse era a lenda de uma certa brutalidade no trato, um preconceito baseado na potência anunciada, que ao dobrar sempre a parada no escuro vai a jogo sem medo. Daí ter-se criado a ideia errada de que eram amplificadores do tipo jogador de futebol americano: rápidos e fortes de físico, mas pouco elegantes no verbo.
Claro que a história não se repete, apesar da espiral hegeliana admitir a possibilidade da evolução dialéctica com base nas experiências passadas. Se a memória não me falha, os antigos Krells a ventoinhas tinham igual poder nos graves mas menos presença e resolução nos médios, e o agudo era menos extenso com vagas sugestões de uma certa rugosidade electrónica ao tacto auditivo pelos padrões actuais. Ontem como hoje, é sobretudo a calma sob pressão, a serenidade perante a adversidade que continuam a distingui-los. Os Americanos dizem deles que são unflappable. Talvez por isso eu ache que um 302 chega bem para as minhas necessidades: um par de 400 seria overkill. E não só porque faziam disparar os disjuntores do circuito independente do meu estúdio sempre que os ligava...
Em havendo a hipótese logística, não deixe de comparar o som via CAST com as ligações balanceadas convencionais. Com CAST, o som é mais coeso, mais orgânico, menos colorido – num sentido lato - e tem a vantagem de se poder utilizar cabos longos no comprimento e curtos no preço. E a sinergia entre o 505 e o 202 é total, ao ponto deste se ter superiorizado à concorrência num teste recente por esse simples facto.
Contudo, o tempo, o grande mestre, instalou no meu espírito outra dúvida metódica. O CAST, sobretudo na ligação 202/302, parece funcionar como um guardião da moral da música: educada, polida, elegante, certinha, politicamente correcta. Ainda que o poder esteja lá todo, como o de um garanhão com rédea curta. Será do cabo? Fala-se dos novos cabos CAST by Nordost. Afinal com CAST os cabos também fazem diferença? A verdade é que quando mudava para cabos Siltech balanceados sentia de imediato a coloração (oxidação?) da prata. E lá voltava ao CAST: há menos energia aparente, menos vivacidade, menos joie-de-vivre, mas também há menos colorações (nasalidade, por exemplo), que são aquelas “cores” que se dispensam bem. Por outro lado, parece haver menos cor tout court, que é o conjunto de todas as cores dinâmicas que fazem falta ao som e lhe conferem riqueza tonal e harmónica. A vida é feita de compromissos, e o CAST é um bom compromisso: não se pode viver com ele, não se pode viver sem ele...
Faltava-me experimentar as ligações não-balanceadas que por terem condensadores (arghh!...) de protecção na entrada são as aconselhadas para utilizar com prévios a válvulas como o “Mac” C2200. Tinha à mão um par de cabos longos Deltec Black Slink e... o som ganhou, além de um inesperadodo alento dinâmico, vida, escala e substância! Ora, sabendo-se que os cabos não-balanceados são mais sensíveis a interferências electromagnéticas externas, será que a alma do som é afinal composta por algum tipo de distorção ou coloração que nos agrada? Ou são os condensadores de entrada que filtram o lixo e deixam passar a música? É que a sensação acústica é exactamente a oposta: o Krell 302 fica até um pouco “wild”, por comparação com a ligação CAST.
Ser certinho o tempo todo também pode causar depressão, quando vista pela perspectiva dos registos médios, por exemplo. Às vezes é mesmo preciso uma pessoa deixar-se ir na onda. Se prefere os volts aos amperes, sirva-os como os shots: em chamas, incendiados pela luz das válvulas.
Nota: declaro por minha honra que não estou sob a influência de álcool, no momento em que escrevo. Os únicos shots que bebo são de música.
É, pois, esta a minha ordem de preferência:
1. Na ligação prévio/amp: cabos single-ended (com válvulas), CAST, balanceados.
2. Na ligação leitor CD-SACD/prévio: CAST, balanceados, single-ended.
Por mim, se fosse colocado perante a dificuldade de escolher entre o 202 e o 302 para levar para a proverbial ilha deserta, optava de caras pelo Evolution 302. Porque os amplificadores Krell são como a democracia: não é perfeita, mas enquanto não inventarem um sistema melhor...
E eu não sou como o anarquista que, tendo naufragado, ao chegar a uma ilha, perguntou ao primeiro indígena que lhe apareceu: “Há governo?! Então, sou contra!...”. Com a Krell no poder, eu voto sempre a favor. E quem ganha por maioria absoluta é a música.
Para mais informações: IMACÚSTICA