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CRÓNICA DO SOM
A história só deve ser escrita depois de respeitado o necessário distanciamento. Deixem-se arrefecer as emoções no lume brando de comentários ditos, publicados, repetidos à exaustão. Analisem-se os factos disponíveis, e dê-se então início ao processo narrativo pelo caminho da isenção possível quando a temática é a inefável arte da reprodução sonora, substituindo-se a sensação do momento pela perenidade da sensatez e do pragmatismo crítico.
Primeiro dá-se ao povo o que o povo quer: a imediatez crua e factual de sons e imagens sobre as quais pode exercitar o seu imaginário sem o condicionamento das baias de uma interpretação redutora; só depois vem a escrita que não se compadece com agendas mediáticas e tem o seu tempo de maturação.
O Hificlube vai publicar em breve em 'fascículos' diários, as notas de JVH sobre o Audioshow 2009, que se realizou nos dias 13 a 15 de Março, no Hotel Palácio do Estoril, preenchendo assim os “espaços em branco” entre as fotos e os vídeos já publicados com enorme sucesso. Espaços em branco que não impediram que se atingisse um record absoluto de visionamentos. Não é tanto uma narrativa factual como se exigiria a um cronista do som, é antes um cruzamento de experiências vividas.
Em que medida o passado auditivo pode influenciar as audições no presente? Será possível transmitir factos reais através de sensações subjectivas como são as proporcionadas por audições públicas em condições em constante mutação: de espaço, de tempo, de equipamento, de pessoas, de discos; de temperatura, de humidade, de disposição física e de espírito, de disponibilidade pessoal? Ou até de empatia com um produto, de simpatia pessoal por um fabricante ou distribuidor? Ninguém é imune ao ambiente social e cultural em que vive e se movimenta.
Da leitura das notas de JVH, o leitor não deve esperar pois nem análises definitivas, nem refutações indefinidas, nem classificações rígidas, apenas um esforço genuíno de isenção crítica dentro dos condicionalismos do seu longo relacionamento com as pessoas e as coisas do mundo do áudio, agora num espaço que lhe suscitou uma girândola de recordações pessoais.
HOTEL PALÁCIO, ESTORIL
Numa época de crise financeira só comparável à do pós-guerra, o Hotel Palácio do Estoril serviu de novo de refúgio à aristocracia (do áudio). Se era de um ambiente de luxo e dignidade que o highend precisava para mostrar a sua classe, il n’y a plus rien...
AJASOM
Na Ajasom, o cinema não passava no Éden, onde se ouvia Diana Krall (ver video em Media) sem imagem, mas sim na sala Sintra. Fui lá na Sexta, achei que a sala se dava mal com o grave das Indra. E a culpa não era delas, coitadas!, conheço-as bem e sei que são boas raparigas.
No Sábado, o António Almeida mudou a mobília e colocou as colunas “à largura”. Juntou-lhe um “sub” desconhecido com bom aspecto de génese “car-audio”, que eu pedi para desligar. O som estava mais baixo e a sala, apesar do mau feitio, não reclamou tanto como na sexta. E eis que com a fonte DCS Scarlatti - Transporte, Conversor e Relógio; e amplificação: Conrad Johnson – Pré Amplificador CT5 e Amplificador ET250S, ouvi algo de muito raro.
Deolinda o i o ai
DCS/CONRAD-JOHNSON/AVALON (ver video em Media)
Pondo mentalmente de parte tudo o que de “grave” se passava ali, a Deolinda (reparem que era a saloia da Deolinda e não a cosmopolita Jacintha, cantora de lounge de hotel de 5 estrelas em Singapura, gravada com microfones a válvulas e consolas vudu em versão XRCD) cantava uma espécie de fado folclórico, e o sistema deixou passar inteirinho o sarcasmo benigno e a ironia patente na entoação.
Sentimentos, emoções, inflexões, insinuações, sensações; humor, amor, dor, choque, pavor e calor; ódio, raiva, paixão, alegria e tristeza, isso é que é difícil de reproduzir. Graves, médios e agudos são como a água benta, cada qual toma a que quer...
Disparei a câmara às cegas no escurinho do cine-AJASOM, e logo surgiram estes seres videófilos atentos aos Transformers que se exibiam no ecrã (ver video em Media)
Na sexta, tinha assistido a um excerto dos Tranformers na sala Sintra. O som pareceu-me apenas um complemento da imagem que era excelente. Notei, contudo alguma instabilidade na focagem. Voltei lá no Sábado. Nunca tinha visto o filme, embora tivesse encontrado uma das personagens em Las Vegas, em “carne e osso” (não, não foi a bela de serviço, foi um dos “transformers”...), e achei graça ao registo bem humorado sem descambar para a palermice pura e simples.
Um dos bonecos originais do filme exposto no stand da Dolby (CES 2008)
A imagem do Meridian MF10 estava espantosa: incrível nitidez, cores saturadas (um pouco ao gosto americano), com extraordinária riqueza cromática, relevo e profundidade. O ligeiro excesso de saturação correspondia
grosso modo ao ênfase do grave na sala ao lado mas conseguia-se ver a alma nos olhos das personagens. E os olhos (ao contrário dos ouvidos) não mentem...
DELAUDIO
ESOTERIC/PASS/MONITOR AUDIO (ver video em Media)
Depois do Salão Imperial, onde pontificavam as Avantgarde, era esta, sem dúvida, a sala mais bonita do Hotel Palácio. E estava recheada de 'mobiliário' de luxo de marcas famosas como Esoteric, Monitor Audio e Pass. Delfim Yanez era o sacerdote oficiante, e via-se-lhe no rosto que recuperou a fé no highend, depois de um período de dúvida existencial, mais imposto pelas incertezas do mercado que pelas suas próprias convicções. Já o disse várias vezes, Delfim é um audiófilo genuíno sob a capa de um comerciante pragmático, que sabe medir o pulso do mercado como um amplificador de Classe A reproduz as ondas sinusoidais: com altos e baixos, com meios ciclos positivos e meios ciclos negativos, mas evitando rupturas de transição.
No Palácio o som era de alto nível, em especial sempre que o 'relógio' batia as horas certas, o
Esoteric G 0Rb funciona como um maestro que dá os tempos de entrada correctos aos músicos. A pauta é a mesma, a interpretação é que é outra...
Mas, sendo a equipa a mesma, eu preferi o memorável som do jogo em casa, isto é, nas instalações da própria Delaudio (
ver reportagem). Talvez porque, como escrevi na altura:
'
A sala é grande e introduz algum “blooming effect” (eu escrevi blooming, não booming, atenção), que favorece os registos ao vivo e as grandes orquestras, conferindo-lhes escala'.
Há também demasiado lixo na corrente eléctrica dos hotéis e alguma sobrecarga, e isso pode ter alguma influência no resultado final. O tweeter de fita soou-me um pouco 'verde' - seria um novo par de PL300?
Também é verdade que não tive o tempo, a calma e o sossego proporcionado por uma audição privada. Apesar disso, não ouvi nada que me fizesse mudar de opinião sobre o excelente desempenho desta equipa audiófila.
Nas instalações da Delaudio '
ouvi, por exemplo, a melhor interpretação da Abertura em mi maior do poema sinfónico “Tannhäuser”, de Wagner, por Solti, à frente da fabulosa orquestra de Chicago, numa gravação Decca de 1958, sobretudo o hino em si maior. A orquestra transborda de emoção erótica e ecoa com enorme carga dramática no Medina Temple, na Universidade de Illinois. Este é um poema sinfónico sobre a oposição entre o amor carnal e o espiritual. E é isso que o Esoteric G 0Rb nos dá: a carne e o espírito da música'.
A Delaudio está de novo na Premier League do Highend.
ESOTÉRICO
GENEVA/NAD (ver videos em Media)
IMACÚSTICA
EAT/METRONOME/KRELL/MAGICO (ver videos em Media)
It’s a kind of magic
Depois de ter vituperado a ideia peregrina de misturar highend com electrodomésticos sonoros, na FIL de má memória, sou o primeiro a elogiar a nova postura da Audio de lhe conceder tratamento VIP com room service e tudo.
Reclamei dignidade para o highend e, embora as condições idealizadas nunca atinjam o ideal, passe a redundância, seria difícil encontrar hotel com mais classe que o Palácio, que foi refúgio da aristocracia caída em desgraça com a guerra e judeus ricos de passagem para o novo mundo. Mesmo em situação de crise a aristocracia não perde os seus pergaminhos. E o highend é a aristocracia do áudio.
Por muito que custe aceitar aos arautos dos amanhãs que cantam, nenhum país progride sem elites e haverá sempre uns que cantam melhor que outros. Assim é também com os sistemas de som. Cada um de nós acha que é tão bom como os melhores, ou que o nosso sistema de som supera muitos dos ídolos de pés de barro pagos a peso de ouro que tivemos oportunidade de ouvir sala sim, sala não.
Até no futebol há quem defenda que Cristiano Ronaldo não vale o que custa e que o Mourinho não passa de um pedante, convencido e arrogante. Visto do sofá, aquilo é só empurrar a bola... e se tivesse tirado este para mandar entrar aquele, o resultado teria sido outro.
O que está um servidor a fazer no meio do campo, quando podiam ter lá posto uma gira-discos analógico? E a relva? Está demasiado alta, abafa o som. Campos pelados estimulam a reverberação, toda a gente sabe. Os centrais estão demasiado afastados e há um buraco no palco sonoro. Bola rente à relva é que é bom. Jogo muito alto só pode resultar em distorção. Não somos todos nós treinadores de bancada, desportistas de sofá?
Afinal o que têm as Magico de mágico? Não passam de colunas vulgares com preço inflacionado? Ao meu lado, oiço dizer: as minhas colunas B&W de mil euros tocam muito melhor. Esta é uma reacção natural e até saudável. Faz parte da natureza humana. O provinciano parolo acha tudo o máximo. O parolo snob desdenha para esconder o provinciano que há em si. Mas criticar depois de pesar os prós e os contras é um dever de cidadania.
Significa isto que todos temos direito à nossa opinião. Mal do mundo se todos estivessem de acordo ou, pior ainda, tivessem medo de expressar o que sentem. Devemos dizer sempre, gritar o que nos vai na alma, escrever até: as Magico são fantásticas; as Magico desiludiram-me; gostei assim-assim; são boas; não prestam, pronto.
Contudo, do mesmo modo que não se deve condenar uma pessoa sem conhecer bem o processo, convém informarmo-nos primeiro, e só depois tirar conclusões:
Conheci as Magico nas
CES 2005, na sala da Jeff Rowland. Já na altura, Jeff, que foi o padrinho das Avalon, disse-me: as Magico são algo de muito especial. Seriam as colunas que eu gostaria de ter fabricado.
Continuei a seguir a carreira das Magico e na CES 2007 tive o raro privilégio de ouvir as M(ighty)6. A magia estava lá toda, como se Mr. Wolf pretendesse dizer-nos: este é o objectivo final de todo o verdadeiro audiófilo. O caminho faz-se, hélas, caminhando por itinerários alternativos sem portagem: V2, V3, M3, M5.
Na
CES 2008, o som das V3 já não podia ser apenas uma coincidência. As Magico não o são só de nome, pensei.
Finalmente este ano, na
CES 2009, as M5, arrebataram a crítica. Da TAS à Soundstage, passando pelo Hificlube onde eu publico numa língua que ninguém entende. Entretanto, já Ricardo Franassovici tinha incluído a marca no seu vasto portfolio. Ricardo tem 30 anos de experiência. E pode dar-se ao luxo de escolher o que quer e o que não quer representar. A Apogee e a Threshold perceberam tarde de mais o que significa perder um distribuidor como a Absolute Sounds. Mesmo correndo o risco de melindrar Dave Wilson, apostou forte na Magico, ao ponto de se deslocar propositadamente a Portugal para as apresentar no Audioshow. Caso raro: ele próprio passou horas a fazer a demonstração! Mais: as M5 que a Imacústica apresentou no Hotel Palácio são par único na Europa, e ainda cheiravam a verniz...
Entrevista com Ricardo Franassovici (Absolute sounds Of London) sobre as Magico
Depois disto, antes de nos pronunciarmos negativamente devemos dar às Magico M5 o benefício da dúvida? Será que tanta gente experiente de vários quadrantes está equivocada, e não ouviu aquilo que alguns treinadores de bancada toparam logo ao primeiro vagido: no tom, no timbre, na imagem, no enfoque, na dinâmica?