O QB-9 veio acompanhado por um Mac Mini, artilhado com o software Amarra e um disco rígido prenhe de música digitalizada pelo Nuno Cristina. Agradeço ao Nuno ter-me permitido vasculhar os seus arquivos musicais: diz-me que música ouves, dir-te-ei quem és...Como sempre acontece nestas coisas, há muitos gostos comuns e, no acervo que me foi enviado, encontrei muitos discos de eleição.
A maior parte da colecção consiste em cópias de CDs “ripados” a 44,1kHz. Havia, contudo, alguns álbuns com obras de Mahler a 96kHz e outras peças diversas de Mozart. Claro que aproveitei para ouvir alguns downloads a 96kHz também, e aproveitei o iTunes para brincar com o upsampling de CDs a 88,2kHz. Um mundo maravilhoso de oferta musical às ordens de um simples...rato.
A verdade é que há muito tempo que não me divertia tanto. Há quem pense que eu sou um crítico conservador, amarrado ao passado analógico e às válvulas. Mas olhem que não. Se alguma coisa me amarrou aqui foi o Amarra.
Fui o primeiro crítico nacional (se é que havia outros nessa altura...) a apostar no CD, logo em 1983, quando ainda poucos sabiam o que isso era. E publiquei vários artigos sobre o futuro digital, no semanário Êxito, que pertencia ao Correio da Manhã, para onde transitei depois. E daí para a revista Imasom. Seguiu-se o jornal Público, a revista Audio, de que fui co-fundador, e o Diário de Notícias, onde encontrei muitos apreciadores de música e de som audiófilo. E muitos detractores. Gente má e invejosa há em todo o lado, infelizmente. E por lá permaneci 15 anos. Sempre com o CD e o áudio highend como pano de fundo.
Agora, no Hificlube, estou nas sete-quintas, porque escrevo apenas sobre o que me dá prazer, e já não por dever de ofício (as deadlines davam-me cabo do coração...). E o Ayre QB-9, esse, deu-me muito prazer. Daí que já não corra como antes atrás da cacha e do exclusivo, da ânsia de ser o primeiro. Mesmo quando podia sê-lo. Como é o caso do Krell Evo 402 e, que utilizei aqui como amplificador principal para ouvir o Ayre QB-9, como sempre acolitado pelo McIntosh C2200.
Now I take my time, and enjoy every minute of it. A minha única preocupação é conseguir transmitir aos leitores por palavras a emoção dos sons. Um pouco na linha de Franco Serblin com quem acabei agora mesmo de falar ao telefone. Qual era o tema? As Ktêma, claro.
O AYRE QB-9 USB DAC foi-me apresentado em Las Vegas, na CES 2009. Quando entrei na sala da Ayre, senti logo que havia ali algo de especial. O som, cuja fonte era um servidor, tinha densidade, coerência e transparência. Tudo características que até aí nunca tinha associado ao “som de computador”.
Seja PC ou MAC, o computador não é o ambiente ideal para a música viver e ser feliz, até porque tem tendência a tratá-la como ficheiros numéricos. E, em formato digital, é o que ela é, de facto. Mas para além da amplitude e frequência, que os 0 e 1s do código binário tão milagrosamente conseguem codificar e reproduzir, a música gravada tem um terceiro eixo cuja precisão é fundamental para poder ser apreciada por humanos: o do tempo.
Ora, os computadores são seres instáveis. E, se é verdade que, na transmissão de dados, a velocidade constante e a ordem do fluxo é pouco importante, desde que os bits cheguem todos ao destino, com música a batuta do maestro faz toda a diferença.
Assincronismo
O Ayre QB-9 é um dos poucos DACs do mercado a utilizar a batuta da transmissão assíncrona de dados por USB, desenvolvida pela Wavenlength. Basicamente, a USB assíncrona é bidireccional, e é o clock do DAC quem dá ordens ao computador, de forma a controlar de forma constante o fluxo de informação, “escravizando-o”, e não o oposto, como acontece com os outros DACs USB. Ou seja, o QB-9 faz com os computadores o que o meu Chord DAC64, mantendo o volume de dados na memória buffer constante e devidamente ordenados: First In, First Out. Só que, como a ligação USB à fonte é bidireccional o controlo, é ainda maior.
Daí também que não haja ainda DACS USB com conversão assíncrona a 192kHz. O assincronismo exige a bidireccionalidade, e as ligações Firewire são unidireccionais.
A vantagem do computador é que podemos ligá-lo a um disco externo ou à internet e ter, à distância de um clic do rato, toda a nossa colecção de CDs, além de ficheiros musicais em alta resolução, cuja gestão pode ser feita através do iTunes, with a little help from Amarra.
Simplicidade
As simple as it gets. Talvez seja até simples de mais. O QB-9 só tem uma entrada: USB. And that’s it. E eu gostava que ele tivesse ao menos uma entradita SPDIF até para poder comparar com outras fontes. Mas não. Portanto, só deve comprar o Ayre QB-9 quem se converteu às delícias do iTunes. Ou da HDTracks que comercializa versões de grandes discos a 96kHz. E não só para os downloads, pois pode digitalizar toda a sua colecção, guardá-la num disco rígido e ouvi-la depois, reconvertida com a vantagem do assincronismo. E do upsampling. E do higher bit rate.
Quer isto dizer que para ouvir CDs em suporte físico preciso de outro DAC? Não necessariamente. O Mac Mini tem uma excelente drive (mais silenciosa que muitos transportes digitais), que lê tudo (menos SACD e Blu-ray), incluindo os discos áudio da Chesky e da AIX a 96kHz, em formato DVD, que eu tinha aqui a um canto e reencontrei com prazer redobrado. E os 96kHz lá aparecem no visor do QB-9 para que não restem dúvidas à navegação sobre qual a resolução do sinal original.
Já ouviu a versão de alta resolução de Ink, de Livingston Taylor? O famoso assobio de Livingston a 96kHz soa como o canto do rouxinol. E o som é, ao mesmo tempo, tão doce e tão transparente, que se torna penoso voltar para a versão em CD.
Duplicidade
Mas o QB-9 tem duas saídas: XLR e RCA. De uma maneira geral, prefiro sempre as RCA às XLR, embora a evidência científica me prove que estou errado. Eu acho que o problema reside no C2200 que é pseudobalanceado, e soa invariavelmente melhor com interconnects simples. Perde-se em tensão e recorte no grave o que se ganha em musicalidade e corpo nos registos médios.
E tem também dois tipos de filtros de reconstrução de formas de onda, comutados no painel traseiro num daqueles switches minúsculos, que só se conseguem alcançar com o bico de um lápis ou de uma caneta: Measure e Listen.
Como o nome indica um “mede” melhor e o outro “soa” melhor. Se me permitem, eu acho que não é assim tão linear, passe a expressão. O primeiro está afinado no domínio da frequência; o segundo no domínio do tempo (a la Wadia). Measure oferece mais recorte, tensão e definição; Listen oferece-nos uma melhor ilusão de espaço. Podia viver com qualquer deles, e deixo o debate para os hair splitters. Mas se tiver que escolher, escolho “Measure”. Os subjectivistas que me perdoem.
Autenticidade
Não, o Ayre QB-9 não é, (a perfeição paga-se caro, hélas), o dCS Scarlatti. E mal estaria a Ajasom se assim fosse, tendo em conta a abissal diferença de preço. O grave não tem o mesmo controlo, articulação, wallop&drive e densidade específica. O agudo é sobre o discreto, sem ser cinzento ou opaco, ainda que paradoxalmente não perdoe registos impertinentes. Os médios são as good it gets: robustos, definidos, transparentes e ao nível do melhor que já ouvi, até com LP! E, quando digo médios, digo quase tudo entre o que importa ser ouvido entre 100Hz e 10kHz. Ou seja, 90% do orçamento musical, em função do PIB de cada disco.
Mas integrado num sistema em redor de um Mac Mini, com o conforto moderno do iTunes, acolitado pelo Amarra, e o potencial privilégio de ouvir todo o manancial de álbuns em alta resolução até 96kHz-24bit, já disponíveis na net, amplificados pelo duo Mcintosh C2200/Krell Evo 402 e reproduzidos pelas Sasha, fez-me esquecer o passado e entrar de peito feito neste maravilhoso mundo novo da globalização digital.
Há muito tempo que não dedicava tanta atenção às audições. E olhem que é cada vez mais difícil eu ficar assim amarrado tanto tempo a um equipamento de áudio, ao ponto de desejar ficar com ele...