Os primeiros casinos inspiraram-se na limitada mitologia de um país sem história. Esgotado também o filão do oeste selvagem, foram beber na fonte da mitologia clássica.
Em Las Vegas, pode passear-se pela Roma antiga e tirar fotografias com Cleópatra; visitar as pirâmides do Egipto ou subir à torre Eiffel.
Lá do alto, disfruta-se a vista deslumbrante do rio de lava de faróis, que corre pastoso entre margens de hotéis inverosímeis, archotes acesos na noite de breu do deserto, enquanto à volta a cidade se espraia mansa e chã, procurando refúgio na escuridão das montanhas que a cercam.
Las Vegas é o reino-do-faz-de-conta, logo não surpreende que, em Janeiro, todos os anos, seja ponto de encontro obrigatório da indústria electrónica de entretenimento, cujo objectivo último é desligar-nos da realidade. Até as relações pessoais são hoje cada vez mais virtuais graças aos gadgets. Fazemos amigos no Facebook com um simples clic – e não já encontramos nenhum que produza em nós o tal clic.
E, contudo, persiste-se no erro, buscando na sofisticação dos iPads, iPhones e LCDs em 3D os ais que nos faltam na vida real, os suspiros de emoção, que só o contacto humano pode proporcionar.
Não que haja falta de humanos em Las Vegas. Eles abundam como a água nas mil fontes da cidade. Turistas que enchem a “strip” com o mesmo entusiasmo ocioso com que fazem o passeio dominical no shopping, os olhos marejados de luz, arregalados perante o espectáculo público dos jogos de água e fogo, que pretendem atraí-los para outros jogos menos graciosos no interior dos casinos.
A multidão heterogénea acotovela-se nas mesas de craps, lançando os dados e ilustrando cada jogada com interjeições coloridas de vernáculo anglosaxão e gritos de entusiasmo. Casais vestidos pela Nike e pela Armani confraternizam na mesma mesa de Poker. De jeans, ténis e boné de pála. Ou de smoking, vestido de noite em declive perigoso e sapatos de agulha. O estatuto social aqui é aferido pelo nível de aposta. Pelo vício, não pelo hábito. Que não faz o monge.
Outra perdição em Las Vegas, além da gastronomia (que bem que se come no Olive’s, e no buffet do Bellagio!, onde nos podemos maravilhar com os guerreiros de terracota do jardim japonês...), são os espectáculos. Os teatros são construídos exclusivamente para cada produção. Os preços dos bilhetes das fantasias artísticas do Cirque du Soleil são pouco menos que escandalosos, mas ninguém parece sair de lá defraudado: you get what you pay for.
Viva Elvis! estreou-se recentemente no casino Aria, integrado no complexo City Center (1,8 biliões de dólares!), que inaugura um novo paradigma arquitectónico. Aos casinos temáticos, que davam de Las Vegas uma imagem de disneylândia para adultos, sucedem agora autênticos manifestos da arquitectura moderna.
Depois do Wynn e do Encore, temos o Aria e o Cosmopolitan. Quem foi que falou em crise?
O espectáculo é uma biografia ilustrada de Elvis, com as coreografias de artes circenses que caracterizam o Cirque du Soleil, e soluções técnicas de sincronismo de filmes e gravações originais com uma banda actuando ao vivo em palco. Tão perfeito que quase nos faz acreditar que Elvis está, de facto, vivo!
A série CSI dá-nos de Las Vegas uma ideia de Sodoma e Gomorra, mas aos olhos do turista acidental a cidade surge antes como um oásis luminoso, onde a água jorra de mil e uma fontes, numa tentativa para exorcizar o deserto onde nasceu.
VideoHD: as mil fontes de las Vegas
O culto pagão da água atinge o clímax apolíneo na dança elegante dos repuxos do lago do Hotel Bellagio (palco do filme Ocean’s Eleven), que sobem ao céu, de dia e de noite, ao som de músicas populares para gáudio de centenas de espectadores debruçados no muro circundante; e tem a sua versão dionisíaca na violência telúrica da erupção do vulcão do Mirage, a miscigenação divina do fogo e da água, o som dos tan-tans abafando os arrotos carbónicos das mui desvairadas gentes, que percorrem a via sacra dos casinos da Strip, e páram, a máquina fotográfica numa mão e a lata de cocacola na outra, lançando gritos de espanto, que se ouvem com inusitada nitidez no ar frio e seco da noite.
No Venetian, residência temporária do High Performance Audio, para onde converge em Janeiro toda a crítica especializada, os turistas podem percorrer de gôndola os canais de água limpa e desinfectada, sem o mau cheiro dos originais, entrando no casino por baixo de uma réplica da ponte de Rialto. E os gondoleiros cantam, tal como em Veneza – o Sole Mio tem um preço, claro!
Lá dentro, espera-o o jogo e as compras – actividades lúdicas que evoluem em função da cor do cartão de crédito. E o luxo da decoração: os sumptuosos tectos pintados com frescos de cores fortes e sem a patine dos séculos dos originais.
Neste contexto, dois eventos disputam o interesse dos milhares de visitantes: o Porno Show (ou Adult Show) com o seu cortejo de putas esculpidas a silicone e chulos anabolizados e tatuados com tintas coloridas por pigmentos metálicos, que parecem ter saído de um filme de ficção científica da série B - elas, sobretudo, parecem ser uma espécie alienígena; e o High Performance Audio, que nos arrasta a nós também todos os anos, com o seu cortejo de audiófilos, críticos e, hélas, algumas prostitutas políticas...
Não admira, pois, que neste caldo de cultura de luz, som, espectáculo e excessos vários sejam apresentados equipamentos de áudio tão extraordinários e fora do comum que mereçam menção separada.
Senhoras e senhores, é entrar, é entrar, o Hificlube vai mostrar-vos aqui em breve áudio de espantar, com formas também esculturais e preços igualmente pornográficos, num espectáculo que, não sendo de circo, exige muito malabarismo...
Continua: Parte 2 _ ÁUDIO DO ARCO-DA-VELHA