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2012

Highend 2012 - Munique: Arte Analógica (giradiscos)



ARTE ANALÓGICA no Highend 2012


     
«Retira-se o disco da capa com dois dedos leves, qual hóstia sagrada no acto litúrgico. Colocado o disco no prato, faz-se descer o braço. Há quem consiga apontar a agulha com precisão de cirurgião, e ela segue depois pelo seu pé o tortuoso caminho, centriptamente contrariando a força centrífuga, denunciando-se na fritura branda, estranha para quem já nasceu na era digital, ao lavrar sons na terra negra de espiras ondulantes e hipnóticas.


A arte de baixar e levantar manualmente o braço do gira-discos devia ter um capítulo na Ars Amandi, de Ovídio. Quando a agulha penetra a espira, inicia-se o coito musical, que pode durar apenas o tempo de uma faixa ou um lado completo: A ou B. O simples virar do disco tem um efeito de suspensão narrativa, um sentimento de puro gozo de antecipação, que se perdeu com o CD, tal como o fim dos intervalos no cinema.


   


No final, o disco continua a girar, mesmo quando a música já deixou há muito de se ouvir, numa atitude lânguida de abandono: os puristas rejeitam os mecanismos de elevação automática do braço.


O verdadeiro amante, satisfeito o desejo, não gosta de abandonar a alcova sem uma última manifestação de carinho: limpa carinhosamente a agulha das trovas do tempo que passa.


       


Ao contrário do leitor-CD, o gira-discos não tem a função «repeat». Cada audição de um LP é assim um acto consciente e voluntário: todos os rituais se cumprem na repetição de gestos sagrados e imutáveis, segundo Lèvy-Strauss.


No CD a música é uma complexa trama de números cabalísticos; não há contacto físico entre a agulha de luz e o disco; e o próprio acto de reprodução é regulado à distância por controlo tão remoto quanto asséptico: não há desgaste, nem risco, no duplo sentido da palavra. Eis porque haverá sempre quem prefira sofrer os efeitos perversos da electricidade estática, o desespero dos empenos, a angústia da morte anunciada das espiras, em troca do prazer de ouvir e coleccionar LPs raros, que se vão tornando objectos de colecção. Ou talvez por isso...


No LP a música dura o tempo da actuação de uma bailarina, evoluindo em pontas de diamante sobre a superfície brilhante do disco, ao ritmo de 33 rpm, no espaço limitado do palco pelo raio de acção do braço. No CD, tal como nos relógios digitais, o tempo musical é uma representação numérica.


 


Nos gira-discos, é o espaço percorrido pelo 'ponteiro' analógico que determina o tempo: o que já passou e o que ainda falta passar.

Enquanto no analógico o tempo existe em função do espaço, no digital só o tempo existe - daí a importância da precisão do «clock» e os efeitos perversos do «jitter» na performance dos leitores-CD.


Ora o tempo, em si, sem a componente espaço, não passa de uma abstracção. Ao determinar o tempo musical em função do espaço, o gira-discos tornou-se ele próprio, paradoxalmente, um objecto de arte intemporal.


O CD foi lançado no mercado com o arrogante slogan «perfect sound forever». Passados apenas 20 anos, está prestes a ser substituído pelo streaming digital. Com ele cai também o mito da eterna juventude. O LP vai continuar vivo: velho, gasto, empenado; a voz que perde claridade, o catarro insinuando-se no discurso.


   


Et pour cause, soará sempre mais natural, mais humano. Pura analogia?» 


 


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