Hoje vamos lembrar as Ktêma e o seu auspicioso regresso à Imacustica, depois de quase uma década de ausência, mantendo todas as qualidades de um produto intemporal que, como todas as obras de arte, ganha mais valor com a passagem do tempo.
O confinamento é propício à organização. De memórias. De histórias. De arquivos: fotos, vídeos e documentos.
Franco Serblin está na Torre do Tombo dos meus arquivos e no Panteão das minhas memórias. Esta é a minha homenagem a um Mestre e um grande amigo, se lá no assento etéreo onde se partiu, memória desta vida se consente...
E a Imacustica é em Portugal o Museu vivo da sua obra passada (Sonus faber) e presente (Franco Serblin Studio), sendo as Ktêma o legado póstumo mais importante da última fase da sua vida, tal como as Stradivari foram da fase anterior.
Franco Serblin está na Torre do Tombo dos meus arquivos e no Panteão das minhas memórias.
Comprar umas Ktêma hoje, não é uma atitude sentimental, continua a ser uma decisão racional, embora também emotiva, porque se uma coluna de som resiste à passagem do tempo, mantendo-se tão atual como quando foi criada há uma década, isso significa que vai continuar a valorizar-se, porque não faz concessões à histeria coletiva da novidade a todo o custo, tal como a filosofia de há 2000 mil anos de Tucídides, na qual se inspira: ‘Ktêma eis aei’, algo que é definitivo e perene, por oposição a ‘Panta Rei’, que designa o que é caduco e mutável.
Para Franco as Ktêma eram: ...a fusion of the old, enduring experience with the light, free, searching spirit.
Ainda hoje são.
E, após a sua morte, o seu genro Massimiliano Favella, quis manter viva a obra do Mestre, com quem colaborou em vida, e manteve o mesmo andamento ‘Moderato gracioso’, tão próprio dos artesãos de Cremona, que buscam a perfeição, e de que é descendente direto, num mercado que é 'Presto assai'.
Franco trabalhou cinco anos(!)nas Ktêma até considerar que estavam prontas para ser comercializadas.
Da Grécia antiga até ao nosso tempo
Para Tucídides, Ktêma é uma contradição entre termos: algo que é real, mas que ainda não foi concretizado; que é apenas possível num futuro remoto e simultaneamente já um facto indesmentível no presente e dá significado a tudo o que acontece desafiando a compreensão: um bem supremo que está fora do alcance do comum mortal; o ideal último da vida e uma busca sem esperança.
Dois mil anos depois, as Ktêma continuam a desafiar a compreensão humana, embora já não sejam uma busca sem esperança, porque Franco Serblin as tornou possíveis e são um facto indesmentível no presente. O futuro é hoje.
Franco Serblin, um homem sábio e santo
Sobre Franco Serblin escrevi num artigo que publiquei, em 1996, no DN sobre as Sf Concertino:
‘Franco tem da vida a visão de um asceta, a humildade de um santo e os conhecimentos empíricos de um homem sábio que bebeu a sua vasta cultura humanística, artística e musical diretamente na fonte pura da civilização latina.’
Nota: os leitores podem ler este e outros artigos na integra em formato pdf, no final deste texto.
O côncavo e o convexo
Da audição das Ktêma, na Imacustica, em 2011, das audições subsequentes em shows e da minha vivência de um mês com elas chez JVH, retenho na memória auditiva, com o imprescindível apoio das minhas notas, já utilizadas em outros escritos, as seguintes ideias de força.
Nota: escrevo em estado de confinamento sobre acontecimentos que se passaram há 10 anos, com base em memórias auditivas, sempre falíveis, e notas avulsas e apressadas, igualmente pouco credíveis, pelo que aconselho uma audição atenta logo que possível. Não é por acaso que publiquei este artigo como Editorial e não como Teste/Review…
É óbvio que há ali, no jogo de linhas côncavas e convexas do triplo arco e no reforço metálico da base e do topo, mais do que uma simples sugestão de que a Ktêma e a Sonus faber têm na origem um óvulo comum.
Mas a comparação termina aqui, se excetuarmos a partilha do material genético da pele e das grelhas de cordas.
Tezzon vs Serblin
Tezzon, o novo engenheiro responsável da Sonus faber, e Serblin têm métodos diferentes de “voicing” e concepções diferentes de neutralidade. Um é mais yin, o outro mais yang. Um é mais ativo, o outro mais contemplativo.
Tezzon dá primazia às medidas em câmara anecóica: da largura de banda à dinâmica, à transparência, ao enfoque preciso, à ausência de caixa, às tonalidades leves e às cores claras, que conferem ao som a modernidade, que permite a um produto de luxo audiófilo integrar-se facilmente numa configuração estéreo ou multicanal.
Do cabaret para o convento
A Ktêma, de Serblin, é, por comparação, quase monástica na sua sobriedade empírica – e soa expansiva no grave com a espiritualidade de uma acústica de catedral. A Ktêma é para ouvir música. Religiosamente. Mas que não tem de ser apenas música religiosa...
Não é uma coluna para exibir perante amigos e convidados para os deixar de boca aberta de espanto (e inveja), pelo poder, pela dinâmica, é antes uma coluna para apreciar no silêncio - e em silêncio, porque também toca bem a níveis de volume noturno.
Pode alimentá-las com um amplificador a válvulas. Mas tal como as Extrema, que também utilizam um ‘refletor’ de graves, as Ktêma gostam de sentir poder e não são uma carga fácil.
Embora só Deus possa agora salvar este país, a verdade é que andamos cada vez menos religiosos, e preferimos os prazeres profanos, que dão menos trabalho e mais gozo. Só que duram pouco - e não lavam a alma da estupidez humana. Como a música tocada pelas Ktêma.
A primeira coisa que vai notar é o contraste entre a ‘doçura’ do tweeter Scan-Speak de 28mm de cúpula de seda, desenhado por Ragnar Lian, e o inesperado ênfase numa zona alargada de presença (a Ktêma é tudo menos escura), que confere claridade e alacridade ao som, a partir de um par de unidades de médio-graves de 100mm, do tipo cardióide, com faseador de ponta-de-bala.
Os dois altifalantes de médios são propositadamente pequenos (para favorecer a fase e libertar a imagem estereofónica dos efeitos da difração) e podem parecer ‘à vista’ demasiado pequenos para carregar o piano até lá abaixo aos 135Hz.
Mas os dois woofers Scan-Speak de 230 mm, escondidos na ‘mochila’, e os duplos pórticos reflex impõem respeito dinâmico ao ouvinte, quando são chamados à pedra, dando apoio aos médios no vale fértil das tonalidades mais quentes, num jogo rembrandtiano de claro-escuro.
Tal como Bach, Serblin não busca a neutralidade a todo o custo, antes procura ‘um som bem-temperado’. Uma vez, em conversa, depois de ter aturado um crítico-científico, que lhe mostrou gráficos de resposta após o jantar, confessou-me, com um sorriso de olhos azuis por cima da chávena de café, que não afinava o som para agradar aos computadores, mas aos seres humanos como nós.
De tal forma que Andrea Bocelli, a quem Franco ofereceu um par de Ktêma, lhe escreveu, dizendo:
Every recording of my voice seemed a bit warmer and more beautiful! It was a fabulous experience to feel the presence of the singer right next to me…
Não é só o ritmo (que excita), o poder (que inebria), a harmonia (que cativa), o contraponto (que embala). É a linha melódica do grave (que surpreende e extasia)...
Depois, percebemos que isso se deve a uma particularidade única das Ktêma: os woofers cumprem discretamente outra tarefa muito mais importante: deixar-nos ouvir a melodia, que também existe no grave e antes estava guardada na cave. Sim, melodia no grave! Can you believe it?!
Não é só o ritmo (que excita), o poder (que inebria), a harmonia (que cativa), o contraponto (que embala). É a linha melódica do grave (que surpreende e extasia)...
O mistério do Proscenium
Na audição doméstica, não ouvi nada que contrariasse a minha opinião prévia, pelo contrário só a reforçou ainda mais.
Até que resolvi fazer uma experiência que me deixou de tal modo perplexo que entrei logo em contacto com Franco Serblin, e trocámos, então, vários emails sobre esta ‘descoberta’.
Que saudades do debate com o Mestre!
Basicamente, descobri que retirando a tampa traseira perfurada que protege e ‘modula’ (by giving the membranes of the loudspeaker the same “resistance” to both the front wave and the rear wave, creating a synchronicity in the vibration) o grave respirava melhor e ganhava limpeza, ritmo e velocidade.
Os graves das Ktêma criam no palco sonoro um efeito acústico semelhante ao do efeito visual da aurora boreal.
Mas eis que as Ktêma passaram a soar como as ‘outras’.
E eu perdi aquilo que as diferenciava, algo de fascinante e difícil de explicar, que me ocorreu só agora designar por ‘stealth mode’: a capacidade para desaparecerem e comportarem-se como ‘coluna de painel’, ao mesmo tempo que se tornam expansivas no abraço estereofónico das baixas frequências, quando se sabe que os graves reproduzem sobretudo informação monofónica e omnidirecional, daí a utilização de apenas um subwoofer nos sistemas trifónicos, de que as Sf Snail, de inspiração DaVinciana, foram as precursoras.
Os graves das Ktêma criam no palco sonoro um efeito acústico semelhante ao do efeito visual da aurora boreal.
Foi preciso um par de D’Agostino Momentum (as Ktêma gostam de se alimentar bem) para eu perceber a verdadeira função da ‘tampa’: ‘a rear diffusion that accompanies and complements the ‘heart’ of the music without invading or obscuring it’.
O painel traseiro, com as suas aberturas acústicas e fendas longitudinais, é um elemento fundamental do ‘proscenium’, expandindo o palco, enquanto o ‘olhar’ do ouvinte, testemunha privilegiada do evento, se foca no centro da ação, num ponto focal, a partir do qual o espaço envolvente se desenvolve, para dar abrigo e conforto aos intervenientes no processo musical em curso.
…o ‘proscenium’ expande o palco, enquanto o ‘olhar’ do ouvinte se foca no centro da ação…
Esse efeito é obtido pela dispersão lateral do grave, que dá amplitude ao palco e pela limitação judiciosa da projeção traseira, que se escapa por fendas verticais, que lembram os eFes, ou aberturas acústicas dos violinos de Cremona, que lhes conferem mais poder acústico. As unidades de médios também têm eFes rasgados em ambos os lados para regular a pressão dentro da câmara e controlar a radiação de energia.
Esta constatação levou-me a pedir perdão ao Mestre num email, em inglês, para que nada se perdesse na tradução:
‘They sound wonderful now. They fill both the room and the soul. Bass is powerful, informative and tight, yet involving and ample in its acoustical embrace. Mids are creamy and magical. Highs are transcendental.
I beg your forgiveness, Master Serblin, for having doubted your skill and artistry. I stand corrected: the ‘proscenium’ is not just a marketing tool. It is there for a reason…’.
Nota: os leitores podem ler na integra ‘The Birth Of Ktêma’, no final deste artigo em formato pdf.
‘No Ano da Morte de Franco Serblin’.
Foi assim com lágrimas nos olhos que escrevi o breve epitáfio de Franco Serblin, em Abril de 2013:
Franco Serblin morreu no Domingo de Páscoa, o dia da ressurreição de Cristo. O mundo perdeu um artista, mais do que um artesão do som – sonus faber - eu perdi um grande amigo. Fica a obra. Que descanse em paz.
De todos os grandes criadores audiófilos que conheci, ao longo da minha carreira de trinta anos, Franco Serblin terá sido aquele com quem estabeleci uma maior empatia, que se tornou com o tempo numa relação de amizade fraterna, alicerçada no respeito mútuo e, sobretudo, na minha admiração pela sua genialidade e personalidade cativante.
Os contactos pessoais eram raros, porque Franco não gostava de voar, embora a sua imaginação tivesse asas de anjo. Mas das poucas vezes que estivemos juntos era como se nunca nos tivéssemos separado. A conversa fluia ilustrada pelo sorriso tímido e beatífico de Franco.
Via-o como um cardeal da religião audiófila, da qual eu era apenas um fiel servidor, e estou certo que Deus terá em conta a bondade da sua alma.
Recordo dois momentos altos do meu relacionamento profissional e pessoal com Franco: a visita à nova fábrica da Sonus Faber em Arcugnano, por ocasião da apresentação à imprensa das Stradivari (ver Artigos Relacionados); e a sua, creio que primeira e única, visita a Portugal, por ocasião do Audioshow.
Lembro-me que fomos jantar um robalo ao sal, no Guincho, com as respectivas esposas, que ele considerou “uma obra de arte gastronómica”, e do seu olhar maravilhado quando, tendo parado o carro em cima da ponte, ele viu pela primeira vez o Palácio dos Conde de Castro de Guimarães, iluminado como num conto de fadas, com o mar a beijar-lhe os pés.
Quando, finalmente, chegámos aos Jerónimos e à Torre de Belém, as lágrimas corriam-lhe pela face. Virou-se para mim, abraçou-me e beijou-me sem dizer uma palavra. É esta a imagem de Franco que, ainda hoje, guardo no coração.
Deviam tê-lo sepultado num caixão com a forma das Stradivari, a sua obra máxima.
Caro Franco è stato per me un onore conoscerti. Riposa in pace.
Ktêma Specifications
Frequency Response: 26Hz - 33Khz, in room
Nominal Impedance: 4 ohm (minimum 3, 2 ohm at 70 Hz)
Sensitivity: 92 dB/W/m
Minimum power amplifier: 20W per channel
Dimensions: 42,5 cm × 46 cm × 111 cm (unpacked) 52 cm × 57 cm × 110,5 cm (packed)
Weight: 110 kg/pair (unpacked) - 127 kg/pair (packed)
Coleção Rara de Arte Audiófila
A linha completa da Franco Serblin é composta apenas por 4 modelos:
- Ktêma: 26 500 €
- Accordo: 7 700 € (monitoras)
- Accordo Essence (de-chão): 14 900 €
- Lignea: 4 990 €
Para mais informações: IMACUSTICA
Registos em vídeo das Ktêma do arquivo do Hificlube