Há muito, muito tempo, por esta altura do ano, eu estaria numa galáxia distante, em Las Vegas, para fazer a reportagem da CES. Hoje limito-me a divulgar algumas poucas novidades em áudio da CES 2023, da feira de vaidades eletrónicas mais importante do mundo.
Um maremoto tecnológico atirou o áudio borda fora, e hoje a mais famosa feira de tecnologia do universo não é mais que um ‘freak show’ de gadgets, muitas vezes inúteis ou de comercialização impossível, que apenas pretendem atrair as atenções do público, portando-se as empresas como socialites do Instagram e TikTok em busca de cliques e gostos.
Tudo começou com a moda de 'o meu televisor é maior (e mais fino) do que o teu', passou-se depois ao meu robô é mais inteligente do que o teu; ou o meu carro polui menos, vai mais longe e é mais rápido e, porque não, mais inteligente também.
Há hoje carros que voam, bicicletas que pedalam por si e sanitas que fazem a análise instantânea da urina todas as manhãs, não vá o colesterol tecê-las; e a realidade virtual é agora extensiva também ao olfato; há até scanners para analisar a pele e propor tratamentos personalizados (as senhoras vão gostar desta).
Mas do incrível mundo do áudio que, durante mais de 20 anos, da ocidental praia me levou a voar dezenas de horas, em janeiro, para chegar a Las Vegas, e caminhar depois quilómetros nos corredores de hotéis luxos, onde se demonstrava uma diversidade incrível de equipamentos (sobretudo, colunas de som), pouco ou nada resta.
Tenho saudades de voltar a Las Vegas, de me hospedar em hotéis fabulosos, de jantar em restaurantes fantásticos e de ver espetáculos maravilhosos produzidos pelo Cirque du Soleil, como Mystère, O, Ka, Love (Beatles) ou Elvis. De assistir a apresentações em penthouses luxuosas, com vista sobre a cidade, por grandes nomes como o saudoso Dave Wilson (sem álcool) ou Laurence Dickie, da Vivid Audio (com muito álcool). E de passear em limusinas gigantes que os fabricantes alugavam para transportar os jornalistas.
E de poder ver e ouvir colunas de som que, em alguns casos, admito, não eram menos estranhas que os gadgets atuais, como as colunas da Solar Sculpture (ver vídeo) que funcionavam a energia solar! De viver os ambientes psicadélicos criados pela equipa da Not For Sale, que expunha equipamentos que não pretendia vender a ninguém, com audições regadas a vinho, uísque e outras substâncias ilícitas. Ou as colunas Western Electric, da Silbatone, que engoliram um homem.
Nota: ver vídeos
CES 2023
Dos tempos de glória do áudio, em Las Vegas, apenas resistiram alguns fabricantes tradicionais, que fazem agora parte de grandes grupos multinacionais, quase todos de origem chinesa, os únicos que conseguem suportar os milhões exigidos para expor no terreiro da feira das vaidades eletrónicas.
Assim, das dezenas de produtos, que eu divulgava nas páginas do DN/DNA e no Hificlube.net, fica aqui esta pequena amostra em 2023.
Naim 200 Series 50th anniversary
Para comemorar o 50º Aniversário a Naim exibiu na CES 2023, em Las Vegas, a nova 200 Series Classic com um trio de novidades: o Streamer NSC222, amplificador NAP250 da sexta geração e um fonte de alimentação externa NPX 300. Já temos apalavrado o teste do Streamer para breve.
JBL
Depois do sucesso das JBL 4305P ativas, que receberam um dos nossos ‘awards 2022’, a JBL foi mais longe e apresentou na CES 2023 as JBL 4329 P ‘streaming speakers’ com conectividade sem fios (Chromecast, AirPlay2, Bluetooth 5.3 e aptX), processamento digital do sinal e 300W de amplificação total. A 4329 P vem equipada com um médio-grave de cone de papel de 20 cm e o tradicional tweeter de compressão de 2,5 cm com corneta de dispersão; e um DAC 24/192 com compatibilidade MQA.
E ainda o gira-discos ‘direct drive’ JBL TT350 Classic, com estrutura em alumínio folheada a madeira, já com braço de curvatura em S e célula MM Audio Technica.
FOCAL
Apresentou na CES 2023 a nova gama para áudio e home cinema Vestia, composta pelas colunas de suporte Nº1 e os modelos de chão Nº 2, 3 e 4, correspondentes ao número de altifalantes de médio-graves. E ainda a coluna Vestia Centre Channel. A Vestia preenche o espaço comercial entre as gamas Chora e Aria, em termos de preço e qualidade.
Crónica de Viagem, do Alexis ao St. Tropez
Ainda a título de saudade, aqui fica um excerto de uma Crónica de Viagem, esta sobre o ambiente que se vivia nos hotéis Alexis Park e St. Tropez, em Las Vegas, onde se exibia o HighEnd esotérico.
A crónica foi publicada em 2006, quando eu já adivinhava o que ia passar-se, e devo tê-la escrito sobre o efeito do jetlag ou de alguma libação mais forte, pois era tudo menos politicamente correta. Eis, pois, a crónica, mas com alguns cortes da censura.
Na CES, o highend é tratado com a deferência e consideração que se reservava no século passado para a aristocracia caída em desgraça. A burguesia endinheirada, que tomou conta do poder após a 2ª Grande Guerra, sempre gostou de convidar para as suas festas duques, condes e marquesas, cuja única fortuna era o título nobiliárquico. Hoje foram substituídos pelas vedetas mediáticas, em cujo seio também há condes de pacotilha, que se mastigam (ugh!) e deitam fora como a pastilha elástica
O highend representa a aristocracia, que enche as páginas das Holas audiófilas: The Absolute Sound, Stereophile, etc., a que o Hificlube se associa por puro prazer como “outsider”, o que nos permite ter uma visão mais clara e menos “engajada” da situação. As marcas japonesas são aqui as vedetas mediáticas que mudam de visual a cada três meses para se manterem nas capas das revistas cada vez mais ausentes dos escaparates.
Mas quando se trata de negócios de milhões, são as multinacionais da imagem, das telecomunicações e da informática que detêm realmente o poder. E quem está no poder não gosta de misturas: a monarquia fica sempre muito bem nas fotografias, mas está em declínio, e por isso é exposta às objetivas dos repórteres em lares de luxo da terceira idade, como o Alexis, aos quais se tenta dar a dignidade devida a quem já reinou, mas está no ocaso da vida e já não tem poder económico.
No Alexis, ano após ano, vejo as mesmas caras, apenas com mais rugas e com menos cabelos, no mesmo local, com a mesma conversa da treta, a ouvir a mesma música de sempre, demonstrando os mesmos modelos, agora na versão 'Mk qualquer coisa', em salas vazias.
Quando o sol brilha, a maioria dos visitantes prefere ficar cá fora junto à piscina ao ar livre, a arrotar gases de coca-cola, com os dedos lambuzados dos molhos coloridos de hambúrgueres requentados, criticando sons que não ouviram ou ouviram mal, enquanto os fabricantes tentam negociar com os jornalistas amadores presentes uma “review” (de preferência positiva) num site improvisado à pressa.
Para chegar às páginas da Stereophile já fia mais fino, e é quase tão complicado como entrar no mundo da Fórmula 1, onde se exige, como condição sine qua non, ter um bom patrocinador.
Se há coisa que detesto é “a brand with an attitude”. Daquelas que, mesmo tendo a sala vazia, parece que nos estão a fazer um favor por nos deixar ouvir duas faixas de um CD, num sistema milionário, que só se vende porque ainda há tipos como eu que voam 10 000 quilómetros para informar os seus leitores que ele existe e se recomenda, excitando-lhes assim o desejo de posse.
Quando se fala da CES de Las Vegas, o leitor associa o acontecimento ao “glamour” (a propósito: a palavra é inglesa, e não francesa, significa brilho, e lê-se “glémâ” e não “glámúr”, como erradamente pensam as nossas locutoras e as “socialites” pindéricas).
Mas não há nada de glamoroso, muito menos no Hotel St. Tropez, onde a única forma de atrair pessoas é oferecer um “barbecue” à borla. Único inconveniente: perde-se uma hora na bicha e ficamos a cheirar a fumo. Quando alguém se sentava ao nosso lado, numa sala fechada do Alexis ou nos transportes gratuitos pagos pela CES, ficávamos logo a saber que ele também tinha ido ao St. Tropez. Consta que a CES vai colocar detectores de cheiros à entrada: quem cheirar ao barbecue do 'The Show', não entra…
De resto, as salas do St. Tropez estavam às moscas. Quando eu entrava de câmara em punho com um ar atarefado, e eles me viam com o “badge” da Press ao peito, saltavam da cadeira como que impulsionados por uma mola, na remota esperança de que alguém, algures no mundo, não interessa onde, pudesse porventura saber que eles existem.
Eu acho que eles não fazem lá muito negócio, a única diferença entre estes fabricantes e os nossos distribuidores é que nunca dão parte de fraco. Enquanto os nossos se lamentam, que o mercado está péssimo, não se vende nada, o pessoal anda a gastar o que tem e o que não tem em viagens ao Brasil, plasmas e telemóveis topo de gama. Já para os americanos (bom, a maioria dos “residentes” no St. Tropez são sino-americanos) o negócio está sempre florescente: “Great show, we are very pleased with the interest shown by the press, and we have had more visitors this year than last year, things are looking good for us, blá, blá”.
Estão a ver a cena? A diferença entre o pessimismo e o otimismo não está nas vendas, está na confiança que se aparenta ter nos produtos e na esperança de uma resposta positiva do mercado.
Quanto à diferença entre o Alexis e o show “pirata” do St.Tropez, que fica logo ali ao lado, reside sobretudo na filosofia da demonstração. No Alexis, a maior parte são marcas bem cotadas no mercado, já distribuídas em todo o mundo, pelo que se aproveita para cativar os jornalistas para testes e os distribuidores de todo o mundo para comprarem os novos modelos apresentados em versão mock-up com seis meses de antecedência, mesmo quando eles ainda não conseguiram vender os anteriores.
No St. Tropez, explora-se o ritual, a crença e a superstição e alguns dos gurus lembram-me mais bruxos, adivinhos e cartomantes numa feira de magia negra que gurus audiófilos. Criam-se ambientes de luz e som propícios à meditação transcendental para ouvir diferenças entre cabos criogenizados e cabos vulgares; válvulas raras de formas estranhas; leitores-CD apertados em tornos para não vibrarem; colunas com espanta-espíritos pendurados; cabos que parecem os balões alongados que os palhaços utilizam para fazer cisnes e burrinhos, que oferecem depois às crianças passantes na rua em dia de festa; colunas de cornetas retorcidas; líquidos milagrosos (também há tinto da Califórnia e malte da Escócia para “abrir” os ouvidos dos mais céticos), gira-discos com pratos que pesam uma tonelada e demoram meia-hora a atingir a velocidade de cruzeiro, amplificadores de 2W com 15% de distorção à máxima potência nos extremos de frequência, etc.
Que por vezes se oiça aqui som de qualidade transcendental (as Cabasse La Sphère, por exemplo), só prova que devemos abordar o fenómeno áudio sempre com um espírito aberto e nunca fazer juízos prévios de valor. Eu regressei de Las Vegas mais tolerante e mais feliz e, tal como Sócrates (o filósofo grego, não o outro) cada vez me convenço mais que só sei que nada sei. Há outros que, sem nunca terem saído do quintal, já sabem tudo. Que sejam muito felizes também. Isto chega para todos…