“Vou nada menos que a Santarém e protesto que de tudo quanto vir, ouvir, pensar e sentir se há-de fazer crónica”. Almeida Garret, Viagens na Minha Terra.
Tendo como pretexto uma retrospectiva da música popular, editada em vinil de 1955 a 1975, em exposição no renovado Palácio do Landal, em Santarém, a AAP, Associação Analógica de Portugal, de que João Militão é uma das “figuras de capa”, realizou no passado fim-de-semana uma exposição paralela de “Hifi Made In Portugal”.
A “Magia do Vinil” é um longo mural de dupla face em forma de “U”, com posters temáticos sobre cada “época musical”, do psicadelismo ao progressivo, do soul ao jazz, da música francesa à portuguesa e brasileira, ilustrada com 500 capas de discos de vinil LPs e 45 rppm (singles e EPs) dos principais protagonistas, que revolucionaram o panorama da música popular no mundo e mudaram a sociedade: Elvis, Dylan, Stones, Marley, Beatles, Van Morrison, Kinks, Pink Floyd, Bowie, Hendrix; Miles Davis e Coltrane; e também Brell, Chico Buargue e Jobim, Amália ou Zeca Afonso; e muitos outros, de Adamo a, pasme-se!, Michel Polnareff.
Na página da AAP pode ler-se que a exposição foi “ gentilmente cedida pelo sr. José Antonio Correia Santos, Associação de Antigos Alunos da Escola Emídio Navarro e Câmara de Almada” e ficará exposta até 7/12/2013.
Percorrer o mural é reviver o passado, como se cada capa fosse uma fotografia de família, cada artista um amigo que nos marcou o carácter e moldou a personalidade. Não é preciso ouvir, basta ver para sentir de novo as emoções de cada momento no tempo, em cada época precisa da nossa juventude.
Ali está a história musical do terceiro quartel do século XX. No fundo, um pouco da história da minha vida também. Quando a pop francesa ainda fazia sentido, a cultura anglosaxónica não tinha tomado conta do mundo e um aluno do liceu não tinha dificuldade em ler no original, numa entrevista ao Paris Match, Polnareff, cuja sexualidade era vagamente ambígua, declarar que a sua “cura para a constipação” era, e cito de memória: “deux jours au lit avec une blonde, mais pas sûrement une bière...”, um escândalo na altura!
Hifi made in Portugal
Paralelamente, realizou-se também no Palácio Landal, a Portugáudio 2013, onde fabricantes nacionais expuseram a sua obra electrónica:
Esaú Cardoso e José Cardoso, da MC Audio; João Moreno, da Selavy Productions; Nuno Lopes, da NL Loudspeakers; João da Bernarda, da Chocolate Tube Factor Project; e the one and only Rui Borges, da RB Turntables.
Nota: a Exaudio apresentou “extra programa” equipamento Audio Note, de origem anglo nipónica.
Aqui protesto, qual Garret, que farei crónica de tudo quanto vi, ouvi, pensei e senti. Porque, tal como a Magia do Vinil, a PortugÁudio foi mais uma viagem no tempo, e não apenas porque o vinil e as válvulas são tecnologias do passado.
Sobretudo, porque senti o entusiasmo genuíno dos fabricantes nacionais (embora todos com nomes estrangeiros...), e isso permitiu-me reviver o meu próprio passado de construtor amador de colunas e amplificadores. Aquela sensação única de prazer e orgulho de ouvir aquilo que se construiu com as próprias mãos, “com engenho e arte, em perigos e guerras esforçados” (queimei muitas vezes os dedos com o ferro de soldar...).
MC Audio e Selavy Productions
Esaú e José Cardoso apresentaram uma elegante coluna de chão, bipolar, com dois minialtifalantes montados numa linha-de-transmissão de quarto de onda, alimentada por um amplificador integrado e um andar de phono de João Moreno, fabricado em cobre, alumínio, madeiras exóticas e balsa, com cablagem em prata pura e fonte de alimentação externa.
“Não tem nome, por enquanto...” desculpa-se João Moreno. Talvez “Bellevy”, o que é que acha?...
NL Loudspeakers/J.Pinto/Rui Borges
Nuno Lopes já tinha unido forças acústicas na PortugAúdio 2012, com Joaquim Pinto (famoso pelos amplificadores a válvulas) e Rui Borges (uma marca de gira-discos já estabelecida internacionalmente), que se realizou então na Casa do Brasil, em Santarém, um local mais adequado ao certame, na minha opinião, até por ter mais patîne, para utilizar uma expressão do próprio João Militão.
Como curiosidade, o facto deste exemplar de gira-discos do Rui Borges Ultimo ter sido o... primeiro!
A NL Loudspeakers apresentou-se em duas salas, ambas demasiado reverberantes, com dois modelos diferentes, sempre com amplificação JPinto.
Chocolate Tube Factory Project
Na fábrica de “válvulas de chocolate” de João da Bernarda, o som tinha o justo equilíbrio entre doce e amargo do chocolate negro, o meu preferido, embora embrulhado em prata branca e vermelha.
Tudo ali para mim era novo, com excepção, claro, de mais uma variante de corneta com altifalante full range Fostex e supertweeter Alnico.
O amplificador integrado a válvulas branco foi concebido em homenagem à mãe, pela sua singeleza, beleza e simplicidade. Utiliza 4 x EL84 em push-pull e 1 x ECC99 sem recurso a feedback, e inspira-se nos clássicos Western Electric que só tinham um botão on/off e um botão de volume.
João da Bernarda falou dos seus projectos de amplificador a válvulas com tal entusiasmo que cheguei a ficar comovido. Dos milhares de euros investidos em “ferro” (transformadores de prata da AudioNote, que comprou em Hong Kong) e “vidro” (válvulas exóticas), das muitas horas de trabalho, e de como um projecto nunca está pronto, antes está sempre em permanente desenvolvimento.
Eu, com a ajuda de Art Blakey, até gostei do que vi, ouvi, pensei e senti.
Almeida Garret também teria gostado de visitar Santarém comigo, no Dia da Restauração, que já não é feriado nacional, porque a Troika nunca ouviu falar em Miguel de Vasconcelos...
Sons de PortugÁudio
Nota: registo digital directo a 48kHz-24bit