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Há duas semanas que vivo com um par de colunas Franco Serblin Accordo Goldberg. E não consigo parar de as ouvir. Tornou-se uma obsessão para mim.
Segundo Massimilliano Favella, o genro de Franco Serblin que herdou a sua obra e jurou continuá-la, Franco também estava obcecado com as Goldberg Variations, de Bach, na fase final da sua vida, daí ter decidido dar o nome de Goldberg a esta versão das Accordo, em formato grande.
A Goldberg é assim uma variante maior da pequena monitora de 2-vias original. Há uma versão de-chão, a Accordo Essence, mas eu acho que a Goldberg encarna melhor o espírito de Serblin.
Filtro divisor interno
Tal como a Accordo original, a Goldberg deve ser montada em suportes, mas ao contrário daquela, o filtro divisor não está montado no interior do suporte, mas na própria coluna, pelo que não faz parte integrante do projeto e pode ser substituído por outro de igual altura (74 cm). Contudo, a Goldberg é tão estreita na base que, para evitar a instabilidade, deve ser fixada com parafusos, o que é mais fácil de fazer com os suportes dedicados.
As Goldberg são de construção especular (simétrica, direita/esquerda) e as suas formas ondulantes conferem-lhe um ‘toe-in’ natural, com o painel frontal apontado ao ouvinte, e os altifalantes escondidos sob um véu diáfano de cordas de violino, inspirado nas Guarneri. Soam ainda melhor de rosto descoberto, mas o que se ganha acusticamente perde-se visualmente. E eu gosto de as ver de véu.
Rosto largo, cintura fina
O novo altifalante de médio-graves tem agora um cone de 180 mm (o das Accordo originais é de 150mm) e a Goldberg, vista de frente, parece assim mais larga do que realmente é, pois tem uma cinturinha-de-vespa.
A saída do pórtico reflex traseiro é inclinada para diminuir o reflexo na parede frontal, mas convém nem as encostar muito à parede, nem colocá-las numa prateleira – gostam de espaço para respirar.
Ao arrepio das normas audiófilas
Enquanto escrevo e descrevo, cumprindo o meu dever de ofício, tenho-me dilacerado na busca de uma forma diferente de abordar esta análise sem ter de cumprir todas as normas da ‘escrítica’ audiófila. Porque as Accordo Goldberg não são apenas mais um par de monitoras de 2-vias de preço elevado – são também uma experiência, que desafia as normas.
Normalmente, eu começaria pelas especificações:
A Accordo Goldberg tem o mesmo tweeter de 29mm de cúpula de seda, desenhado por Ragnar Lian da original, mas a unidade de médio-graves tem agora um cone de microesferas de 180mm, com tapa-poeira em alumínio, ambos perfeitamente alinhados em fase e montados numa caixa de construção super rígida, com estrutura arqueada de madeira sólida de nogueira polida (são lindas!), desacoplada com peças de alumínio e magnésio para controlo de ressonâncias. Mas há mais:
- Resposta em frequência: a banda-larga de 39kHz aos 23 Hz garante que nada escapa ao escrutínio:
- Impedância nominal acessível de 7 ohms (mínimo de 3,8 ohms aos 5.500Hz),
- Sensibilidade: uns razoáveis e nada tímidos 87dB:
As dimensões são de 40.5cm (altura) x 24cm (largura) x 43cm (profundidade), ou seja, cerca de mais 5 cm em todas as dimensões que as Accordo originais. O peso é de 25kg por par que deve ser suportado por stands próprios de 74 cm, de alumínio, com base cromada. O preço é de €9.900, mais €3.000 para os suportes.
Claro que se podia ler isto tudo numa brochura em papel cuchê, mas nem assim seria suficiente para captar a essência das Accordo Goldberg. Permitam-me, pois, ir um pouco mais fundo, com uma abordagem agora mais subjetiva.
Ir além da brochura
A reprodução refinada e transparente das Accordo Goldberg revela todos os detalhes e nuances da música: do delicado restolhar das cordas, à respiração do vocalista e à ressonância do piano. O tweeter de seda dá às vozes uma qualidade etérea, enquanto a claridade dos registos médios é excecional e deixa as vozes e os instrumentos respirar livremente com o timbre e a tonalidade próprias da sua real natureza, sem perda da envolvência musical e emocional, que Serblin procurou toda a vida e agora, graças a Massimiliano, nos oferece além da morte.
A imagem estéreo é holográfica, embora precisa, estável e com coerência de fase. O grave é articulado e em sintonia com o resto do espetro e adapta-se bem a todos os géneros musicais, do jazz à clássica e ao rock, com extensão quanto baste para reproduzir até música eletrónica moderna.
Nota: A imagem estéreo sempre foi uma preocupação importante para Franco Serblin. Lembro-me de discutir o Proscenium com ele durante os meus testes com a Ktêma. Quando me atrevi a mencionar que a remoção do painel traseiro curvo do Ktêma resultava em graves mais articulados e ágeis, ele contra-argumentou gentilmente: "Talvez sim, mas também estás a mexer no efeito Proscenium". E, como sempre, ele tinha razão. Voltei a colocar o painel no sítio.
Jargão audiófilo
Mas cá está, o jargão audiófilo também não chega para descrever o que a torna tão especial. Tudo isto podia ser escrito sobre qualquer outra monitora de qualidade semelhante. Claro que não teriam esta beleza e sensualidade de formas, que distingue as Accordo Goldberg. Nem sei mesmo se os arcos não seguem a sequência de Fibonacci, pois a mim parecem-me de inspiração divina, já que soa como um instrumento afinado no Céu.
Franco tinha a visão de um asceta, a humildade de um santo e o conhecimento de um sábio.
O legado de Franco Serblin
Então, o que têm as Accordo Goldberg de tão diferente? Talvez o intangível, ou seja, o que nos cala fundo na alma. E não é essa a essência de toda a obra de Franco Serblin?
Em 1996, num artigo sobre Franco Serblin, escrevi que ele tinha da vida a visão de um asceta, a humildade de um santo e o conhecimento de um sábio, tendo bebido a sua vasta cultura humanística, artística e musical diretamente na fonte pura da civilização latina. Franco foi dentista, antes de ser artesão do som, e estudou a fisiologia da dor, o que paradoxalmente o terá ajudado a dominar também a arte do prazer musical. A sua obra é assim o espelho da sua própria vida.
Quando oiço as Accordo Goldberg, sinto não só a presença de Franco, mas também a influência de todas as outras colunas de 2-vias cujo ADN está na sua génese: a Minueto, leve, ligeira e viva; a Minima caprichosa, íntegra e discreta; a Minima Amator, airosa, líquida, fluida, poderosa, mas doce; a Electa, generosa e quente; a Electa Amator, temperamental, eloquente, rica no tom e no verbo; a Extrema, dinâmica, rápida, musculada, autoritária, dominadora, mas talentosa (I miss you, baby!); até a pequena Concertino original, de que eu tenho orgulhosamente um par, benzido por Franco; e, finalmente, a Guarneri, a expressão máxima do equilíbrio artístico de Franco Serblin, que é a medida de todas as coisas que vieram depois.
Um portal para a música
As Accordo Goldberg têm genes de todas elas, mas têm o mais bonito sorriso musical de todas as colunas de 2-vias concebidas por Franco Serblin. Como tal, são mais uma obra-prima póstuma, uma janela aberta para o usufruto da arte musical.
As Accordo Goldberg são uma janela aberta para o usufruto da arte musical.
Perceção auditiva aumentada
Qualquer pessoa que tenha sido submetida a uma intervenção cirúrgica sob anestesia geral, como me aconteceu com demasiada frequência nos últimos tempos, pode lembrar-se de um fenómeno estranho, quando a anestesia se dissipa gradualmente. O cérebro, ainda grogue, compensa a névoa persistente da visão turva concedendo-nos uma dádiva temporária: a perceção auditiva aumentada.
De repente, o mundo dos sons torna-se mais nítido e presente: as vozes, o murmúrio distante das enfermeiras, o ruído ambiente - tudo é apresentado com uma clareza cristalina. É como se a nossa audição tivesse sido aumentada para ouvir melhor a realidade acústica que nos cerca.
Enquanto estava deitado na cama do hospital, pensei: curioso, passa-se o mesmo com as Accordo Goldberg: os meus ouvidos parecem estar mais sintonizados com as subtilezas que se desenrolam no palco sonoro, e eu consigo ouvir todas as ‘nuances’ e detalhes com uma precisão incrível, sem precisar de drogas.
Prazer auditivo
Primeiro ouvi-as em casa, durante semanas, alimentadas pelo amplificador híbrido de auscultadores Riviera Labs AIC-10, que é também um amplificador de colunas de apenas 10W. Não sei se é por serem ambos italianos, mas a empatia foi imediata, e prova que as Accordo Goldberg não são muito exigentes em termos de potência. Obviamente, não herdaram esse gene maldito das Extrema, mas antes outro, o que lhes permite tocar alto sem esforço.
Na parte final da análise, fui ouvi-las atuando num dos auditórios da Imacustica (onde gravei o vídeo em baixo), com amplificação Jadis I300, outro casamento no céu, pois ambos têm o mesmo objetivo: emocionar o ouvinte.
As Goldberg também tocam rock
Há uma ideia errada de que todas as colunas de Franco Serblin são exclusivamente concebidas para ouvir música barroca, uma vez que foram construídas a pensar nos instrumentos de corda antigos. Decidi assim testar as suas capacidades ouvindo primeiro música eletrónica, pois estava curioso para descobrir até onde - ou melhor, quão fundo - as Goldberg me levariam.
"Differently" é um bom exemplo do estilo de Marian Hill, misturando elementos eletrónicos e vocais. A canção combina batida eletrónica e percussão numa base rítmica, enquanto os sintetizadores desempenham um papel importante na formação do som geral, criando ganchos melódicos, texturas atmosféricas e efeitos sonoros com elementos percutivos muito incisivos. As Goldberg não perderam nunca o fio à meada rítmica.
Depois, subi ainda mais o volume com "My Kinda Woman" de Mr. Big para níveis de concerto ao vivo. A voz de Eric Martin ressoou na sala com poder e ganas, carregando o peso da emoção pura e dura do rock. Os riffs melódicos de Paul Gilbert deixaram uma marca indelével, ancorados pelas linhas de baixo rápidas de Billy Sheehan, enquanto a precisão rítmica de Pat Torpey na bateria forneceu a batida que impulsiona a banda e nos estremece as tripas. Afinal, as Goldberg também sabem tocar rock!
Mary Stallings, Live at the Village Vanguard, é um dos meus álbuns de jazz ao vivo favoritos. É uma daquelas experiências em que "estamos lá". Sentem-se até os seus passos em direção ao microfone e o silêncio de antecipação de puro gozo entre canções, a que se seguem os aplausos de um público rendido. A paleta vocal vai de um vago sussurro a um grito súbito e arrebatador; o fraseado é excecional, esculpindo cada canção numa obra de arte tangível para a nossa alegria e a do público, que mostra o seu apreço com palmas e interjeições de encorajamento.
A sua postura artística em palco é apoiada pelo saxofone tenor de Ron Blake, com a justa medida entre palheta e corneta; e o piano ágil de Eric Reed acrescenta cor à tela que ela pinta com uma emoção inegável. O baixo de Vincente Archer e a bateria de Carl Allen dão o ritmo fundamental a cada canção. De "Sunday Kind of Love" a “You Are Sensational” e "The Thrill Is Gone", ela leva-nos, com o público presente, numa viagem musical de subtil introspeção, usando a voz como um belo instrumento que a banda acompanha na perfeição. Sim, Mary, tu és mesmo sensacional. E as Accordo Goldberg também.
E que tal um pouco de música para piano: “The Goldberg Variations”, por Glenn Gould, quem mais podia ser? Uma ária de abertura seguida de 30 variações complexas e hipnóticas que exploram harmonias, ritmos e texturas, revelando o génio de Bach, e me ajudam a bater no teclado ainda com mais energia. Não admira que Franco gostasse tanto destas Variações: são composições que inspiram sentimentos de calma ou de alegria, que o devem ter ajudado a passar melhor os seus últimos dias.
Depois, passei do rigor e da precisão metronómica de Gould para a improvisação genial de Keith Jarret: outro grande pianista, que também murmura, enquanto toca. Na verdade, em “The Köln Concert”, ele produz mais uma espécie de gemido rítmico intencional, e não tanto o murmúrio quase inconsciente de Gould. As Accordo Goldberg acompanham-nos, mudando de tom e de humor conforme necessário, mostrando na perfeição a beleza dos estilos opostos de ambos os pianistas.
Serão as Goldbergs capazes de aguentar “Peer Gynt”, de Grieg e a sua música incidental, que se desenvolve com verdadeiras explosões orquestrais e corais, entrelaçadas com a trama em verso de Ibsen? A resposta é um retumbante sim. O equilíbrio era tão requintado que quase não senti a falta da oitava inferior, que só colunas significativamente maiores conseguem reproduzir.
Massimiliano Favella honra o legado de Franco Serblin. Podes descansar em paz, querido amigo.
As Accordo Goldberg ao vivo na Imacustica
Nota: Som gravado diretamente na sala. Vamos ouvir um curto excerto das Goldberg Variations, por Glenn Gould, seguido de um excerto de "Sunday Kind Of Love", por Mary Stallins, Live At The Village Vanguard.
Para mais informações: IMACUSTICA