A Audio Note é a mais conservadora – e também a mais radical – das marcas icónicas de áudio britânicas. JVH passou algum tempo com o leitor-CD AN 4.1x, e elogia a coragem e engenho de Peter Qvortrup.
A Audio Note é provavelmente a mais ‘audiófila’ das marcas de áudio, tanto no sentido da qualidade de som, que prima pela ‘musicalidade’, um dos termos mais ‘gastos’ do glossário acústico, porque quer dizer tudo e não quer dizer nada, como do ‘fanatismo’ dos seus seguidores.
O leitor-CD 4.1x é uma acha para a fogueira da polémica sem fim entre objetivistas e subjetivistas.
Rituais litúrgicos
Aliás, eu já senti isso mesmo, em muitos hifishows: a sala da Audio Note é sempre um lugar de culto religioso, onde é heresia sequer abrir a boca para perguntar alguma coisa, como se os presentes estivessem todos numa espécie de transe. E, sobretudo, nunca se refira a ficheiros digitais de alta resolução, muito menos a MQA, se não quer ser olhado com desdém…
Nota: Num artigo intitulado ‘Da maçonaria audiófila ao luxo do Kempinski’, que podem (e devem) ler aqui publiquei o vídeo acima, da sala da Audio Note, com o seguinte comentário:
‘Na sala da Audio Note, por exemplo, cheguei a pensar que tinha entrado num lugar de culto. Fiquei ali na dúvida se devia fotografar, não fossem os audiófilos presentes considerar a minha atitude um insulto ou heresia...’
Objetos de culto
Todos os produtos Audio Note são assim objetos de culto, que custam os olhos da cara (em termos de valor percebido, pelo menos), e exigem também muita ‘fé’ para poderem ser apreciados devidamente.
Não há, no mercado mundial de áudio, uma marca que afronte de forma tão radical os defensores da análise objetiva, baseada em medidas de laboratório, cujos maus resultados eles não se dão sequer ao trabalho de desmentir.
Pelo prisma sociológico, Peter Qvortrup, o arquiteto-filósofo da Audio Note, seria um perigoso ‘radical de esquerda’ anti-sistema, quase um anarquista, que parece ter um secreto prazer em contrariar todas as normas científicas, que estão na base da conceção de equipamentos áudio digitais:
Nem tudo o que se ouve, se pode medir; nem tudo o que se pode medir, se ouve…’. Quanto menos bits, melhor é o som: 16 bits chegam perfeitamente ‘if done right’!...
‘Our DACs measure like a bag of nails, but the sonic improvements are really quite considerable’ – Peter Qvortrup
Mas se acha que eu estou a exagerar, oiça o próprio Peter Qvortrup dizer isto, numa entrevista cortesia da AVshowrooms, que reproduzimos no final deste teste.
Audio Note: zero oversampling
Dos amplificadores a válvulas, de baixa potência e sem realimentação, às colunas de som, baseadas nas lendárias Snell, que parecem à vista desarmada (mas não aos ouvidos!) apenas caixotes caríssimos com dois altifalantes aparafusados que, ao contrário de todas as outras, até se podem (e devem) encostar às paredes e aos cantos (!); aos leitores de CD e DAC, nos quais recusa utilizar qualquer tipo de filtro, digital ou analógico!, logo rejeita também técnicas de upsampling e/ou oversampling, tudo na Audio Note é concebido com um único objetivo: a simplicidade a qualquer preço.
Nota: os preços só fazem sentido quando se ouve um sistema Audio Note a tocar, sobretudo sem interferência de outras marcas…
…segundo Qvortrup, tudo o que é utilizado em áudio para resolver problemas a montante só os vai agravar a jusante…
Porque, segundo Qvortrup, tudo o que é utilizado em áudio para resolver problemas a montante só os vai agravar a jusante. Para ele, a técnica de oversampling, que consiste em multiplicar artificialmente as ‘amostras’ de sinal para permitir ‘filtrar’ o ruído muito acima da banda áudio, não passa da versão digital do feedback analógico, que já foi descrito como ‘um cão a correr atrás da própria cauda’.
Ambas permitem obter excelentes resultados no laboratório, ao mesmo tempo que degradam a performance acústica de forma catastrófica e irreversível, ainda segundo Qvortrup.
É como escolher uma pessoa para casar com base no relatório clínico: veja lá se lhe toca uma megera cheia de saúde!
(Nota: as poucas leitoras do Hificlube podem transcrever esta diatribe a gosto, porque o princípio também se aplica aos homens…)
Ora, nós somos seres humanos, não somos computadores, embora haja quem defenda que o cérebro funciona no domínio digital. Então, e as emoções não contam? Já leu a obra do Prof. Damásio?...
É como escolher uma pessoa para casar com base no relatório clínico: veja lá se lhe toca uma megera cheia de saúde!
Contudo, no domínio digital, o ruído de quantização (as chamadas ‘frequências negativas) existe, está lá e tem de ser eliminado de alguma forma, normalmente por meio de filtragem digital, seguida de filtragem analógica.
Homeopatia audiófila
Qvortrup garante que é a ‘filtragem’ que introduz ‘digitalite’ no som, ao ‘deitar o bebé fora com a água do banho, sobretudo a filtragem digital agressiva (brickwall filter), e defende a utilização de apenas um transformador na saída, ligado à placa da primeira válvula, que os ‘objetivistas’ dizem que não passam de um placebo homeopático, porque se o ‘doente’ fizer uma ‘ressonância magnética’ o mal continua lá, e ‘vê-se’ nos gráficos, embora não seja garantido que se ‘oiça’: distorção harmónica, distorção por intermodulação, desvios de linearidade, jitter, ruído ultra sónico, etc.
Qvortrup garante que é a ‘filtragem’ que introduz ‘digitalite’ no som, sobretudo a filtragem digital agressiva (brickwall filter)
Enfim, um catálogo de doenças, que a ‘medicina’ tradicional trataria com doses maciças de oversampling, e seria até suficiente para levar o Infarmed a proibir a sua comercialização, como fez recentemente com os ventiladores, que parece que funcionam na perfeição, mas não fazem parte do ‘sistema’ (que domina as compras públicas…).
Só há um parâmetro no qual os leitores CD e DAC da Audio Note batem toda a concorrência: a resposta ao impulso (resposta temporal), que é absolutamente perfeita, embora com fase invertida!
E não é a música fundamentalmente ‘tempo’? Será que Qvortrup tem afinal razão?
Talvez por isso, os leitores-CD da Audio Note também não fazem reclocking. O sinal é descodificado com o ‘clock’, tal como está codificado no CD, segundo a norma Red Book.
Audio Note CD 4.1x: giradiscos compactos
A enorme caixa negra de metal (47x14x43 cm e 11Kg) com painel frontal em acrílico também negro contém o mesmo lendário e robusto transporte Philips CD Pro 2LF do modelo CDT Two e o DAC do modelo DAC2. 1x. Nota: pode optar pelo painel em alumínio na cor natural.
O transporte, que assenta sobre uma suspensão de 4-molas, é de ‘carregar por cima’, colocando-se depois um estabilizador magnético sobre o disco, e tem o mínimo de funções necessárias para reproduzir os CD: Play/Pause, Stop, Skip, todas acessíveis por controlo remoto ou pequenos botões dourados de pressão. E ainda Display, para reduzir/desligar a luminosidade do mostrador OLED em azul elétrico. Eject não há: abre-se a gaveta à mão, fazendo deslizar a tampa, e muda-se o disco…
Atrás, apenas 3 fichas RCA: saídas analógicas e digital (coaxial SPDIF). E, claro, a entrada de corrente de setor e o comutador on/off. Saída AES/EBU não incluída nesta versão. Mas quem paga 10 mil euros para depois ligar o transporte a um DAC externo?...
A secção digital do DAC é muito simples e utiliza um único chip Analog Devices AD1865N, um duplo conversor de 18 bits, que Qvortrup considera ser o melhor de sempre.
Nota: tanto o transporte como o DAC chip estão descontinuados mas a AN garante o fornecimento futuro.
A conversão corrente/tensão à saída do DAC é patenteada e utiliza um transformador, cuja pendente funciona como uma espécie de filtro natural (mais uma idiossincrasia da Audio Note), ligado à placa primeira válvula convertendo corrente de baixa impedância em tensão de alta impedância.
Nota: Em 1995, testei o DAC Counterpoint DA10, de construção modular, que permitia utilizar diferentes DACs (UltraAnalog D20400, Analog Devices AD1862, Crystal CS4328 e Burr Brown PCM69 e outras tantas tecnologias de conversão: multibit, 1-bit (Delta Sigma) e híbrido. Se a memória não me falha, também eu optei invariavelmente pelo multi-bit Analog Devices, pela sua ‘musicalidade’.
Válvulas que iluminam o som
A secção analógica utiliza um par de duplos tríodos 6H23N, de origem russa, configuradas como seguidores de placa (ânodo). A fonte de alimentação com retificação também por válvula utiliza transformadores separados para o transporte e o DAC, e as secções analógica e digital têm regulação independente.
Todos os componentes são de primeira ordem e exclusivos da Audio Note: condensadores de filme de cobre oleado, resistências de tântalo, até a cablagem é de fio de prata. Estes ‘mimos’ pagam-se caro, claro.
Cuidado com as más companhias
Contudo, as idiossincrasias técnicas da Audio Note aconselham a não associar o 4.1x com amplificação de Classe D, por exemplo, por causa do ruído ultrassónico; ou com preamplificadores de banda muito larga, com impedância de entrada abaixo de 100K, porque isso pode limitar a reprodução do baixo profundo.
O ideal é ouvir um sistema Audio Note integral, porque todos os componentes partilham da mesma filosofia técnica e sonora. Só assim vai perceber porque Peter Qvortrup é considerado o guru dos audiófilos não-alinhados: tão radical, quanto genial.
Corrida de obstáculos
Utilizei o disco teste da Pièrre Verany (o original) para avaliar a performance do sistema de transporte/leitura, e o resultado foi o esperado para um Philips Pro: ultrapassou todos os obstáculos de velocidade linear e distância entre pistas, isoladas ou combinadas, e de deteção de HF.
Quanto à correção de drop-outs isolados ou sucessivos, não revelou qualquer problema até aos 1,5mm e portou-se com galhardia (apenas com um soluço inicial) até aos 2,00mm! De referir que a norma é de 0,2mm.
Nota: o 4.1x não tem circuito de desacentuação. Os CD muito antigos dos primórdios do digital registados com ênfase nos agudos podem soar demasiado brilhantes. A culpa é do disco.
E já que o disco estava na gaveta, deixei-o tocar: da música folclórica romena, de Paul Stinga, ao jazz festivo, do Jazz Grass Ensemble; da guitarra clássica, de Arnaud Dumont, à Orquestra Filarmónica de Loire; da voz angelical de Jacqueline Nicolas aos concertos venezianos pelo Concerto Köln Ensemble; da Scheherazade, de Rimsky-Korsakov à Sinfonia do Novo Mundo de Dvorak, e o Audio Note 4.1x não deixou os créditos musicais por oversamplings alheios.
Abelha que voa alto
Em termos aerodinâmicos, uma abelha não deveria voar. Mas voa. E bem. O DAC do leitor-CD Audio Note 4.1x não utiliza qualquer tipo de filtragem digital ou analógica (ver introdução) e não deveria tocar. Muito menos bem. Acontece que toca. Muito bem.
O ruído ultrassónico, as ‘imagens fantasma’ (aliasing) resultantes da conversão digital estão lá, e podem medir-se. Mas não se ouvem.
Pelo contrário, o ruído analógico subliminar e inaudível funciona como o dither digital e ajuda o ouvido a recuperar informação escondida; e a curva de resposta algo ‘arredondada’, semelhante à do LP, favorece a gama média, que soa carnuda e natural com boa complexidade tonal.
Quem gosta de fotografia sabe que a resolução não é tudo. O contraste tonal é mais importante que o excesso de detalhe na reprodução da perspetiva, do espaço e da profundidade, porque é fundamental em termos de ilusão de volumetria num plano 2D.
Se ouvir CD o ‘irrita’, ou ‘deixa-lhe os nervos em franja’, e só a audição de LP o acalma, saiba que não é uma inevitabilidade: os Audio Note são os mais ‘analógicos’ (não confundir com ‘doce’ e sem detalhe) reprodutores digitais do mercado de áudio highend, garantida que esteja a compatibilidade do equipamento associado (ler teste na integra).
O som ganha textura, cor e substância. As vozes soam humanizadas, os pianos soam menos mecânicos e as cordas mais naturais, a percussão tem a estrutura bem definida e os pratos não servem ruído branco à refeição musical (sabe/soa melhor bem quente).
E isso justifica o preço que pedem por eles? É uma questão que só pode ser respondida por si – e pela sua carteira.
Vá à Exaudio ouvi-los, não paga nada por isso. Sobretudo, não julgue sem experimentar.
Produto: Audio Note leitor-CD 4.1x
Preço: 10. 397 €
Distribuidor: Exaudio
Video de apresentação do CD 4.1x no Facebook por JVH
Video da entrevista de Peter Qvortrup à AVShowrooms