O sistema dCS Varèse veio acabar, de uma vez por todas, com a polémica do som digital versus som analógico? Fui à IMACUSTICA — Porto ouvir o Varèse e saí de lá convencido de que o problema deixou de ser a génese digital do som para passar a ser o preço a pagar para reproduzir os bits corretamente.
Hificlube.net teve o prazer de visitar recentemente a IMACUSTICA no Porto, onde fomos calorosamente recebidos por Guilhermino Pereira e Ricardo Polónia, que partilharam generosamente os seus conhecimentos e mais recentes experiências connosco.
Eles tinham uma surpresa reservada para mim e para o meu filho Pedro Henriques no auditório principal: um daqueles sistemas que fazem até um audiófilo experiente como eu sentir-se como uma criança numa loja de brinquedos: o novo dCS Varèse, o pré-amplificador Constellation Virgo III e o amplificador de potência Centaur II, ligado por cablagem integral Nordost Odin Gold a um par de Magico S5 2024.
Já conhecia o Varèse de vista, desde quando me foi apresentado, em 2024, no Show de Ascot, tendo publicado um vídeo da apresentação, que trago de novo à colação (ver vídeo da apresentação no final deste artigo)
A verdade é que nunca tinha ouvido o Varèse, porque David Steven, CEO da dCS, que entrevistei para o Hificlube.net, em abril deste ano (ver entrevista também no final), não permite que o Varèse seja demonstrado em ‘shows’ e apresentações públicas, exigindo que os distribuidores o façam sempre sob condições controladas, sem barulho e distrações.
Segundo David Steven, e cito no original em inglês:
“For us, Varèse was designed to celebrate music, get us closer to its true meaning and help us connect to the artists and those we listen with and share music with. For me listening to music is deeply personal and emotional and Varèse is simply a tool to relay music. However, I feel strongly its ability as a tool is diminished in noisy trade shows, which are not about music discovery.”
Arte minimalista, preço maximalista
O sistema dCS Varèse é composto por cinco blocos de alumínio (seis com o novo transporte CD/SACD) esculpidos e empilhados como uma escultura minimalista, com preço de arte moderna exclusiva.
O sistema na totalidade custa para cima de meio milhão de euros. Mas só o Varèse, na sua configuração com Core, dois Mono DACs, Master Clock e User Interface, anda algures nos 300 mil euros.
Na entrevista com Steve, refiro-me com frontalidade a este “elefante na sala”, porque sempre achei que seria impossível abstrairmo-nos do preço do Varèse, quando o estamos a ouvir.
Mas o que mais impressiona, mesmo antes de soar a primeira nota, não é o preço: é a sensação de estarmos perante um objeto de engenharia levado ao limite — “organised sound”, como lhe chamava Edgard Varèse, o compositor que inspirou o nome deste sistema, cuja surpreendente escolha também é abordada na entrevista.
Ecosistema de áudio
O Varèse é um ecossistema de áudio digital completo, pensado de raiz para otimizar cada etapa do percurso do sinal: da receção dos bits à conversão final.
A arquitetura é modular e distribuída por cinco chassis: Core, User Interface, Master Clock e dois Mono DACs — um por canal. O Core é o “cérebro” do sistema, onde se alojam o circuito de upsampling, os filtros principais, boa parte da modelação e do controlo do ruído (noise shaping).
Os Mono DACs têm a função exclusiva de conversão D/A, com a mais recente geração do Ring DAC em modo diferencial, que duplica o número de fontes de corrente para baixar o ruído e a diafonia a níveis quase académicos.
O novo link exclusivo ACTUS transporta o fluxo de dados modelado, o relógio e os sinais de controlo entre o Core e os DACs. O tempo é regulado por um sistema de 'clock' próprio com dois osciladores dedicados aos múltiplos de frequências de 44,1 e 48 kHz, de forma a reduzir o jitter para valores que, em termos práticos, atingem o limite do mensurável.
A ‘interface’ de utilizador — um chassis próprio com ecrã tátil — é complementada pela nova ‘app’ Mosaic ACTUS, que concentra ‘streaming’ (UPnP, Qobuz, TIDAL Connect, Spotify, etc.) e controlo fino do sistema, incluindo escolha de filtros e circuitos otimizados independentes para PCM e DSD.
Na prática, o Varèse é um 'hub' digital de luxo que pode ser, para todos os efeitos, a fonte única de um sistema de referência. Talvez não por acaso, o gira-discos Michell manteve-se mudo e quedo durante toda a audição.
Quem me dera
Enquanto conversávamos, antes de se iniciar a demonstração propriamente dita, ouvia-se com volume discreto Mariza cantando “Quem Me Dera”. E, de facto, o tema não podia ser mais apropriado: quem nos dera a todos poder ter em casa esta fonte pura de música. Mas logo ali, senti que a voz de Mariza surgia maravilhosamente focada e límpida sobre um pano de fundo de luminoso silêncio.
E não digo silêncio negro, como habitualmente, porque, pela primeira vez, percebi que também há vida no silêncio, no qual o decaimento das notas parece prolongar-se ad infinitum.
Magico S5: as sentinelas negras
A esta sensação, não são alheias as Magico S5, enquanto sentinelas silenciosas, que impunham espanto e respeito, porque o som não parecia sair delas. Esta terceira geração das S5 coloca-as ainda mais perto da série M, tanto em ambição como em engenharia, mantendo-se no patamar intermédio da gama Magico: acima das A-Series, abaixo das estratosféricas M7 e M9.
Trata-se de uma coluna de três vias, selada, com quatro altifalantes:
- um tweeter de 1,1" (28 mm) com cúpula de berílio puro revestida a diamante,
- um médio de 6"
- e dois woofers de 10", todos da mais recente geração Graphene Nano-Tec Gen 8, montados numa caixa esculpida em alumínio de elevada espessura.
Na A5, a Magico introduziu pela primeira vez uma suspensão em espuma de longa duração em vez da tradicional borracha, para “soltar” mecanicamente o cone: a espuma é mais leve e menos restritiva, melhora a integração cone/suspensão, encurta o tempo de passagem a repouso e contribui assim para a redução da distorção.
Este conceito foi transposto para a unidade de médios de 6″ das S5, agora com bobina de 3 polegadas (7,62 cm) em titânio puro, dois ímanes em neodímio de grandes dimensões e tapa-poeira em cobre para linearizar o campo magnético.
A Magico S5 é uma coluna genuinamente full-range, capaz de descer aos 20 Hz com autoridade e controlo, sem precisar de recorrer a truques de 'reflex', que soam muito bem na ficha técnica e são pouco convincentes em salas comuns, porque se incompatibilizam com elas.
O facto de a S5 2024 continuar fiel à filosofia de caixa selada da Magico traduz-se num grave rápido, com notável “para-arranca” e ausência de “arrastamento” ou boominess. É um grave que ignora a sala e só presta atenção à música.
Na sua apresentação, Ricardo Polónia referiu-se a uma incrível sensação de “arejamento”, proporcionada pela espuma na suspensão do cone de médios. Do Varèse para as Magico S5, nada se perde na tradução.
Constellation Virgo III & Centaur II: o músculo civilizado
O pré-amplificador Virgo III recorre ao módulo exclusivo Line Stage Gain Module da Constellation: uma topologia totalmente complementar e balanceada, com dois circuitos simétricos: um para a fase positiva, outro para a negativa — de forma a manter o sinal o mais puro possível.
A alimentação é dual-mono, com transformadores R-core separados para cada canal e um terceiro para os circuitos de controlo, garantindo independência dinâmica entre canais.
O Centaur II, na versão estéreo, é um daqueles amplificadores que parecem subdimensionados para as Magico S5. Na realidade, oferece: 250 W por canal em 8 ohms, 500 W em 4 ohms e 800 W em 2 ohms, com resposta de 10 Hz a 100 kHz (+1/-0,5 dB) e circuitos totalmente discretos e balanceados em ponte.
Segundo Ricardo Polónia, é o seu amplificador preferido para audições prolongadas, pela sua força civilizada e neutralidade tímbrica.
Demografia audiófila
As conversas são como as cerejas e, ao contrário do que é habitual, falámos muito antes, durante e no final de cada faixa que ouvimos. Talvez porque, tal como se ouve o Ricardo dizer, no final da faixa que selecionámos para o vídeo (“Manhattan”, Live At The Variety Playhouse) by Sarah Bareilles), o nosso cérebro não precisa de processar a música reproduzida pelo Varèse, ficando assim livre para se dedicar a outros pensamentos mais gratificantes: os músicos estão ali e o nosso cérebro já não precisa de imaginá-los.
Falou-se, por exemplo, de demografia audiófila e de como é cada vez mais difícil atrair jovens para este culto maioritariamente sénior.
Os jovens hoje dedicam-se aos jogos de computador e a única forma de os atrair, segundo Ricardo, que fala por experiência própria, é dar-lhes a ouvir, num sistema High-End como este, já não o “Jazz At The Pawnshop” e o “Cantate Domino” de antanho, mas bandas sonoras de jogos como “Expedition 33”.
Fez-se luz
Assim, senti-me de novo jovem quando ouvi a faixa “Lumière”, do álbum “Clair Obscur”, interpretada por Lorien Testard e Alice Duport-Percier, cuja voz é hipnótica. A banda sonora tem 154 faixas, num total de oito horas ininterruptas de música!
“Lumière” cria uma ambiência contemplativa de caráter emocional, ideal para aferir não só a transparência do sistema, mas também como ele nos transmite o estado de espírito da intérprete ou personagem, influenciando o nosso próprio estado de espírito, numa comunhão quase religiosa.
Nota: Clair Obscur: Expedition 33 é um RPG de fantasia sombria, desenvolvido pela Sandfall Interactive (França) e publicado pela Kepler Interactive, lançado a 24 de abril de 2025 para Windows, PlayStation 5 e Xbox Series X|S.
O Varèse não é uma máquina, é uma metáfora; representa uma espécie de delírio lúcido, que só existe na arte e nunca na ciência.
Delírio lúcido
O Varèse não é uma máquina, é uma metáfora; representa uma espécie de delírio lúcido, que só existe na arte e nunca na ciência. Simboliza o impulso humano para ir sempre mais longe e, ao mesmo tempo, é uma forma de reconciliação com a tribo analógica. Não porque o digital venceu o analógico, mas porque a discussão deixou de fazer sentido. Peace, brother!
O Varèse é uma forma de suspensão do tempo. Quando a última nota se dissolve no silêncio — esse silêncio vivo, palpitante, onde o decaimento resiste à morte prematura —, percebemos que não estamos só a ouvir melhor; estamos a ouvir mais fundo.
O Varèse não derrota o “som digital”: transcende-o. E convida-nos a uma espécie de liturgia íntima, na qual a tecnologia se torna invisível e o que resta é a presença pura da música, despojada, luminosa e absoluta. Se existe uma porta para o sagrado na alta fidelidade, só pode ser o Varèse. Infelizmente, é uma porta fechada para nós, simples mortais, salvo naquele dia na IMACUSTICA — Porto.
Entrevista com David Steven CEO da dCS
UK Hifi Show, Ascot – Absolute Sounds – dCS Varèse Press presentation












