JVH convocou Camões, Pessoa e Sophia, nesta abordagem crítica que privilegia a Arte em detrimento da técnica e a Música em detrimento do Som.
Na Imacustica, o menu é sempre muito variado. No dia em que fui ouvir as Alexx V, o Manuel Dias insistiu que eu tinha de ouvir também as DeVORE Orangutan O/96, que são de outro campeonato.
No Auditório 3, da Imacustica – Lisboa, estava montado um sistema mais ‘simples’ e de preço ‘quase’ acessível, se considerarmos que as Alexx V, e todo equipamento associado, nomeadamente os DarTZeel, estão numa liga à parte.
O sistema em demonstração era composto por um transporte AADrive da Audio Analogue, com um design sofisticado e gaveta com ‘tejadilho panorâmico’:
Um DAC/Streamer dCS Bartók, que continua a ser a nossa referência também como Head/Amp, e como tal foi julgado pelo Hificlube.net, em 2019, como o melhor de sempre.
E um amplificador integrado híbrido CSA150, uma versão um pouco mais potente do CSA100, com uma válvula singela (um duplo tríodo) que trata exclusivamente do ganho de tensão para garantir a máxima linearidade à partida, passa o testemunho para um circuito de AMOS-FET, que ataca por sua vez o andar de potência bipolar e o circuito de realimentação.
Colunas: as DeVORE Fidelity Orangutan O/96.
Sobre John DeVORE e as Orangutan, publicámos recentemente um artigo intitulado: Ten – Uma Coleção de Artesão – John DeVORE Fidelity: much more than meets the eye.
Cada macaco no seu galho
De facto, à primeira vista, as Orangutan O/96 parecem não ser mais que um caixote de dupla carga reflex atrás e dois altifalantes aparafusados à frente: um médio-woofeer e um tweeter da SEAS, c’est tout, que não têm nada de sofisticado, a não ser a cor azul do cone de graves, que se desvanece avec le temps.
Teoricamente, o painel frontal (baffle) é demasiado largo, logo suscetível de provocar efeito de difração; e as colunas, mesmo montadas sobre os suportes (de madeira), ficam baixas em relação a um ouvinte sentado.
Os acabamentos artesanais são, contudo, de grande qualidade, com o banho do folheado em tom avermelhado (daí a associação com os orangotangos) a que se seguem 10 camadas de verniz, que lhe dão um polimento acetinado e muito bonito.
Energia natural
Mas, ao primeiro som, todas as dúvidas se desvanecem: a resposta polar compensa a altura do tweeter em relação ao ouvinte sentado; o baffle largo energiza e projeta o som na sala, produzindo uma sensação de plenitude sonora, facilitada pela elevada sensibilidade e impedância.
Ten – Coleção de Artesão
Na grande família do HighEnd, as DeVORE Orangutan estão catalogadas pela Imacustica como fazendo parte da ‘Ten - Coleção de Artesão ’, composta por produtos de autor, fabricados com carinho e amor artesanal, com um único objetivo; a qualidade do som tout court.
E não me refiro à qualidade, em termos técnicos, científicos, mensuráveis, mas àquela inefável sensação de que soa natural aos ouvidos humanos, afinal o destino para que foram criadas.
Ninguém discute ou aprecia um livro com base na qualidade da encadernação, a gramagem do papel ou a excelência da impressão.
Claro que também contam, sobretudo se derem conforto para os olhos, ou para agradar aos colecionadores, que os guardam na estante para impressionar as visitas, sem sequer antes os folhear.
Um audiófilo é um leitor de sons
O verdadeiro leitor gosta de se envolver na história, seguir a trama bem urdida, como se a vivesse na realidade, e deliciar-se com o domínio do instrumento da escrita pelo autor, que ‘chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente.’
…a audição de música exige o total envolvimento do ouvinte no processo musical em curso…
Também a audição de música exige o total envolvimento do ouvinte no processo musical em curso. Para isso é necessário que a música o liberte do jugo da ciência e o transporte para um espaço alternativo de beleza e Arte.
Não há nada que nos prenda tanto à feia realidade como a ditadura da ciência. Até o Prof.António Damásio percebeu isso.
Quando damos connosco sentados na sweet spot, a divagar sobre se o médio assim e o agudo assado, isso pode ser… grave, em termos musicais, entenda-se;
Bits são bits?
Quando perdemos o comboio-correio da narrativa, e começamos a especular sobre se ‘Give a little bit’, dos Supertramp, tem a ver com código binário ou com amor, o sistema de som não está a cumprir o seu dever de nos transportar para o espaço do artista.
OK, bits são bits. Já sei. Só que nem todos os bits são iguais, sobretudo depois de convertidos à religião analógica: alguns perdem a noção do tempo.
Verdade ou engano de alma?
Quando está perante um ser humano que o atrai, dá consigo a analisar as palavras do seu discurso, dissecando-o em bits? Ou deixa-se antes levar pelo ‘engano de alma, ledo e cego’?
Engano, digo bem. Tudo não passa afinal de um logro consentido. Mas não é isso que queremos: acreditar que a alternativa proposta pela eletrónica é a realidade tal como foi vivida pelos músicos e – por extensão – por nós próprios?
Doce mentira
Num artigo que publiquei no DN, em 2003, sobre amplificadores a válvulas, intitulado ‘Doce Mentira’, escrevi:
‘A razão diz-me que os amplificadores a válvulas são falsos. O que parece doçura não é afinal mais que amarga distorção harmónica: a verdade nunca se mostra na sua nudez original, mas antes envolta num manto diáfano de coloração eufónica.
As válvulas ‘pintam’ a realidade musical com os olhos da loucura difusa de Van Gogh, a disforme extravagância de Dali, a desintegração formal de Picasso, a subtileza cromática de Matisse, a luminosidade crepuscular de Turner.
Contudo, ao traço definido e metódico, mas frio, do transístor, prefiro mil vezes a mão trémula do pintor de vácuo guiada pelo ardor da paixão; à precisão matemática dos ângulos e das perspetivas, prefiro a convivência caótica das linhas e a ambiguidade das sombras.
Com uma condição: do aparente caos de formas e cores deve nascer um objeto artístico. A Arte não tem de ser a própria natureza ou a sua imitação fiel. A reprodução exata está limitada pela realidade. A Arte não.’
Da objetificação dos sons ao usufruto da Arte
Mesmo com o Copland CSA150, que só utiliza uma válvula, e com uma fonte de som digital aqui representada pelo conjunto AA Drive/Bartók, as DeVORE Orangutan O/96 ofereceram-me, ali e então, o usufruto da Arte, enquanto música, assim ‘da morte libertada’ pela recusa consciente da ‘’objetificação’ técnica dos sons que a compõem.
As Orangutan O/96 não deixam ao arbítrio humano o envolvimento numa relação emocional. Não é possível resistir a essa tentação, porque é superior à nossa vontade.
Sentei-me de caneta em punho, e ainda tentei resistir, assumindo a arrogância do meu papel de crítico, e escrevinhando alguns lugares comuns, como: ‘será que deteto um vago toque de peito na voz, talvez enfatizado por alguma ressonância de painel entre os 100 e os 200Hz?’.
‘Avec le temps’
Mas cedo a pousei, deixando-me levar pelo ‘ledo engano’ de que Carlos do Carmo e Bernardo Sassetti estavam ali a cantar e a tocar ‘Avec Le Temps’, de Léo Ferré, só para mim, numa tertúlia que nunca existiu, e jamais existirá, porque eles próprios já não existem, mas que eu desejava muito que tivesse acontecido, no Espaço do real, restando-me agora a realidade virtual.
O que nos distingue como humanos é este desejo de Ser e de Estar; este espírito gregário que nem o Covid19 conseguiu eliminar. A música proporciona-nos isso, porque nos traz memórias do Outro.
Do Ser ao Estar
As DEVORE Orangutan O/96 têm o sortilégio de tornar reais os desejos, transportando o Ser para o espaço virtual do Estar, compensando-nos assim do isolamento a que um vírus maldito nos votou.
…o que não falta às Orangutan O/96 é Alma, a alma que ilude muitas outras colunas tecnicamente perfeitas…
Não que isso faça esquecer a interpretação original de Léo Ferré, lui-même, o que prova que não é só a tecnologia associada ao som que conta, mas a Alma.
E o que não falta às Orangutan O/96 é Alma, a alma que ilude muitas outras colunas tecnicamente perfeitas.
Com o tempo tudo se vai, assim deixem-nos ao menos acreditar que é possível viver hoje ‘os instantes que não vivemos junto do mar’. Porque:
‘Avec le temps
Avec le temps, va, tout s’en va
On oublie le visage et l’on oublie la voix’
Léo Ferré
‘Com o tempo
Com o tempo, vai, tudo se vai
Esquece-se o rosto e esquece-se a voz’
Produto: DeVORE Fidelity Orangutan O/96
Preço: 14.500 €
Distribuidor: IMACUSTICA