Charles Dickens foi o precursor das novelas em fascículos, que publicava semanalmente na imprensa inglesa. De quando em vez, cedia à pressão dos leitores e o enredo dava uma reviravolta na vida de certos personagens. JVH não cede a pressões: o que será, será...
Viver com o Lumin não é fácil, porque aparentemente não é “user friendly”. Já vimos no fascículo anterior (ler em Artigos Relacionados) que não basta ligar um cabo coaxial e carregar no controlo remoto; ou um cabo USB e correr um MediaPlayer no PC. Exige um NAS, um router de internet, cabo CAT de rede, um iPad, com um app específico (gratuito); e um computador para correr o MinimServer, um programa (também gratuito), que nos permite ter acesso aos ficheiros diff e dsf, que estão na base do DSD, Direct Stream Digital e que, de outro modo, não aparecem nos menus do iPad Lumin app.
Tal como “Great Expectations”, de Charles Dickens, que é um bildungsroman, o Lumin é também um projecto em contínua evolução.
No universo dickensiano, o Lumin seria a personagem misteriosa e muito rica, que se movimenta na sombra e, no final, redime o herói e lhe deixa toda a sua fortuna.
O jovem herói aqui é o áudio digital, que sofreu na pele o pesadelo colectivo do MP3, a 162Kbit/s, imposto por comerciantes sem escrúpulos e ávidos de lucros fáceis; e a ditadura do CD, a mando de quem o LP foi mandado eliminar sem remorso por assassinos a soldo das editoras multinacionais.
Afinal, ficamos a saber, no último capítulo, que o LP, apesar de muito ferido, sobreviveu à hedionda tentativa de audiocídio, com a ajuda de uma fraternidade secreta de maçons, que protegeram assim da destruição o legado analógico; e que o nosso herói, sem nunca ter conhecido a matriz original (matriz=mãe), depois de muita luta e sofrimento, é agora o legítimo herdeiro do DSD e do DXD.
Em memória da mãe, mandou copiar todas as matrizes analógicas para DSD e, como tem bom coração, perdoa ao CD e aceita o irmão bastardo MP3, doando-lhes uma generosa mesada de upsampling, que os faz soar muito melhor.
A novela acaba com a festa do casamento do áudio digital com uma linda Ipad de última geração vestida de branco pela casa Apple. Tudo sob a égide do misterioso Lumin.
Ou seja, se começasse a ler esta novela pelo fim, ficava logo a saber que tinha um final feliz. Por isso é que a escrevi em fascículos...
De corpo e alma
Há quem afirme que o Lumin não passa da cópia de um Linn Klimax DS, com capacidade DSD. A Lumin defende-se, e diz que não senhor, que somos todos feitos de carne e osso e nem por isso somos menos diferentes. De facto, o Lumin utiliza o mesmo chipset Wolfson WM8741, da Linn e os mesmos transformadores de acoplamento
Mais: o Lumin funciona com o app UpnP da Kinsky, o mesmo da Linn, que pode ser uma segunda opção ao UpnP app da Lumin, que é pouco eficaz em termos de organização dos ficheiros áudio, sobretudo para quem tem uma vasta colecção de álbuns digitalizados. O Plugplayer, Songbook Lite e foobar 2000 também são compatíveis.
Eu utilizei o Kinsky e prefiro o da Lumin (firmware 3.0), até porque tem a dupla função de Media Player e de controlo remoto das múltiplas prendas do Lumin (não perca o Fascículo 3). Além disso, o Kinsky crashou uma ou duas vezes e o app da Lumin, que tem as suas deficiências operacionais, admito, funciona depressa e bem, desde que esteja tudo ligado por cabo CAT, incluindo o hospedeiro do MinimServer, embora este também lhe dê para crashar e obrigue à reconfiguração. A Lumin bem podia ter escolhido programas menos...caprichosos.
De frisar que o Kinsky também não dispensa o MinimServer para quem quer gerir os ficheiros diff (DSD) e dsf (SACD). O Lumin app, por si só, permite gerir praticamente todos os ficheiros digitais de qualquer tipo, formato, resolução e terminação: wav, flac, aiff, alac, mp3, etc., incluindo DSX (PCM a 352,kHz). Só os diff e dsf (DSD) ficam de fora e precisam do MinimServer, portanto.
Aqui chegados, pergunta-se: mas a herança DSD é assim tão importante, que justifique toda esta complicação para os ouvir?
A verdade é que há ainda pouca música disponibilizada em DSD nativo. Há meia-dúzia de etiquetas no mercado de downloads de alta resolução (L2, Channel Classics, Cybelle, Blue Coast e agora a Acoustic Sounds. Estes discos virtuais são caros (entre 24 e 50 dólares) e ocupam muito espaço nos discos rígidos.
E se por “nativo” entendermos que a matriz original é em DSD ainda há menos oferta. Não é fácil “manusear” registos DSD nas mesas de mistura. Há a Sonoma da Sony, e pouco mais. Por isso, a Sony e a Philips criaram a DXD (PCM a 352,kHz), a partir da qual se fazem depois matrizes DSD. É assim que trabalha a nórdica L2, por exemplo. Já a Channell Classics e a Blue Coast gravam directamente em DSD, sem rede e sem mistura.
Mas, claro, nem sempre editam a música que nós queremos ouvir. Ou é música clássica, ou é um John Doe qualquer a tocar guitarra, ou uma sueca nua a tocar plimplim numa harpa, salvo seja! Por isso, a Acoustic Sounds optou por utilizar os masters analógicos originais de álbuns de artistas famosos e copiá-los para DSD: Shelby Lynne, Norah Jones, Counting Crows, Nat King Cole, Holly Cole, John Coltrane, etc.
Enfim, lá arranjaram maneira de nos obrigar a comprar o mesmo disco pela enésima vez num formato diferente: LP, cassette, CD, DCC, MiniDisc, SACD, Blu-ray, 96kHz, 192kHz (da HD Tracks) e, agora, DSD96 e 128!
Depois há o SACD. E aqui deparamos com várias questões também por resolver. O Lumin não é um leitor de discos físicos, apenas de discos virtuais (=ficheiros digitais). Aliás, com excepção da LAN Ethernet, nem sequer tem entradas, só saídas, o que prova que foi originalmente concebido como um interface sofisticado para utilização profissional. Por exemplo, é o único com uma saída HDMI com capacidade de oferecer bitstream DSD, o que tem pouco ou nenhum interesse para uso doméstico.
Ora o SACD não se pode copiar para o disco rígido. Ou seja, até pode, se tiver uma PS3 da primeira geração (eu tenho!) e fizer cópias ISO com um programa específico (Audiogate da KORG) e utilizar depois o foobar 2000 para enviar os ficheiros .dsf para o Lumin sob protocolo DoP (176, 4/24 PCM). Mesmo assim, nada nos garante que a matriz original, que esteve na base do SACD, não era PCM (e 90% são PCM a 48kHz/16 bit!...).
Eu tive a felicidade de ter acesso a algumas dezenas de faixas seleccionadas em DSD e a possibilidade de as ouvir com o Lumin em formato nativo (sem recurso ao protocolo DoP=Digital Over PCM). Ora, esta é uma experiência sem retorno...
Que tudo o resto (PCM), tanto ao natural (na resolução nativa: MP3, 44,1, 48, 88,2, 96, 192, 176,4, 192 e 352,8kHz), ou com uma pitada de upsampling a gosto, soe tão maravilhosamente analógico, que quase não se distinguem as diferenças entre formatos, é um gigantesco extra nada despiciendo, porque se adapta a todas as colecções de ficheiros áudio existentes, sobretudo com origem no ubíquo CD (=44,1kHz).
Cheguei a deixar correr os ficheiros da playlist sem me preocupar com a origem. Vale a pena sofrer no mundo analógico para chegar ao céu digital do DSD. Se outra razão não houvesse – e há muitas – eis uma boa razão para colocar o Lumin na sua short list.
Nota: No Fascículo 3, vamos ter oportunidade de ouvir o mesmo excerto de um concerto de Bach para 2 violinos reproduzido a 44,1, 96, 192 flac e DSD nativo.
LUMIN Network Player - Fascículo 1: desafio total
Lumin Network Player - Fascículo 3: em harmonia com a natureza da música
(Continua)