Disclaimer: vou abrir este teste com uma declaração de interesse: há 30 anos que sigo a carreira de Robert Wattss e sou fã dos DACs da Chord. Utilizei, durante quase uma década um DAC64, que está na origem do Dave, testei praticamente todos os modelos que se seguiram, e tenho na minha colecção um Hugo e um Mojo, os modelos portáteis da Chord.
Robert Watts foi dos primeiros a defender a utilização de ‘chips’ programáveis aka FPGA (Field Programmable Gate Array) em lugar dos ‘chips’ pré-programados da Texas Instruments ou Burr-Brown, que, de certo modo, ‘uniformizam’ o som dos diferentes modelos das várias marcas que os utilizam.
A sua teoria de que ‘infinite oversampling’ era a melhor solução para a correcta reconstrução da onda sinusoidal analógica decorrente da conversão digital manteve-se coerente desde sempre, o que evoluiu muito foi a velocidade de processamento disponível.
Agora com o Xilinx Spartan 6 LX75, dez vezes mais rápido que o utilizado no QBD76 e Hugo, e quase 100 vezes mais que o processador do DAC64, Rob Watts pôde finalmente provar que tinha razão, permitindo-lhe atingir já 256 x oversampling no FIR (filtro digital de interpolação), um recorde mundial, que é depois ‘puxado’ a 2048 FS, com base em 166 000 coeficientes de multiplicação, obtendo assim uma sinusóide perfeita sem os erros temporais que afectam a resposta transitória e a reprodução tempo/espaço!
E o Dave, acrónimo para ‘Digital To Analogue Veritas in Extremis’ – e também o nome do seu pai e do irmão de John Franks, presidente da Chord – é a prova viva de que isso resulta. Mas deixem que seja ele próprio a apresentá-lo, neste vídeo exclusivo do Hificlube, obtido no HighEnd2015, de Munique, quando da apresentação mundial do Chord Dave.
Chord DAVE chez JVH
A versão que me tocou – e aqui podem entender o verbo em toda sua ‘literalidade’, porque além de ter tocado bem música, tocou-me fundo também a mim – foi a de cor negra antracite sem o suporte dedicado (ver foto acima), que faz subir o preço já de si elevado de cerca de 10 mil para 13 mil euros. Esta é, sem dúvida, a variante de design mais rebuscada e versátil do ‘tijolo’ de alumínio original do DAC64.
O enorme mostrador circular, em forma de relógio, encastrado no corpo do DAC, num ângulo que favorece a legibilidade, e o controlo de volume e os quatro botões de pressão que o enquadram são a expressão visível da maior versatilidade, que inclui agora também um prévio e uma saída para auscultadores.
Gostar-se ou não é uma questão de… gosto! Não se pode dizer que seja bonito, mas é, sem dúvida, diferente da tradicional caixa rectangular, e tem a construção sólida e o design inovador a que a Chord nos habituou.
O painel traseiro está integralmente ocupado por um batalhão alinhado de fichas de vários tipos para funções não-especificadas (sem legendas). Um conhecedor não terá dificuldade em identificá-las, com excepção das 4 x BNC do lado direito, já lá vamos.
Assim, da esquerda para a direita (na foto) temos as saídas analógicas simples (RCA) e simétricas (XLR balanceadas); as entradas USB type B (PCM 786kHz/DSD512!), 4 x SP/DIF BNC de 75 Ohm, 1 x AES-EBU/XLR (96kHz) e 2 x Toslink (192kHz). Pode ligar um cabo digital coaxial às fichas BNC por meio de um adaptador ou com um cabo RCA/BNC (384kHz).
O quarteto BNC mais à direita é referido erradamente no manual como DX inputs. De facto são DX outputs, um tipo de ligação exclusivo já preparado para os amplificadores Chord DX digitais.
‘Dave has 705/768 kHz DX digital outputs to go with my digital power amps. These are non-switching, but still retain the analogue simplicity of two resistors and 2 capacitors plus a single global feedback path. But power output will be from 20W to at least 200W’ – Rob Watts.
Dar corda ao 'clock'
O mostrador/display divide-se em 4 zonas e apresenta-se em 4 modos (ver Manual), que diferem apenas na cor/preto-e-branco e no tempo de actividade (o Display 4 apaga-se ao fim de 30 s).
Eu gosto do Display 1, fixo e a cores com fundo preto. Na metade superior aparece a fonte seleccionada, a frequência de amostragem (e respectiva cor) e o volume/mute; ao meio temos os modos PCM/DSD Plus, Fase Neg/Pos, Filtro HF On/Off e Display; na terço inferior, os Modos Pre, DAC (pressiona-se simultaneamente Este-Oeste durante uns segundos) e Headphone (liga automaticamente sempre que se introduz o jack de 6,3mm e guarda o volume seleccionado para os auscultadores em memória, que pode ser diferente da secção de prévio, para evitar acidentes dispendiosos e sustos desnecessários).
De ouvidos bem abertos e olhos bem fechados
Como é normal para quem utiliza Windows, primeiro vai ter de instalar a Drive Asio (pode fazer o download no site da Chord). Depois, já pode ouvir streaming (da Tidal, por exemplo) até um máximo de 386kHz/32 bit com o próprio Media Player da Windows.
Para os ficheiros audio, vai precisar de um ‘Player’ como o J.River, e aqui o céu é o limite. Ou melhor, o limite é o mercado, cujo máximo é, por enquanto, DXD 352/386kHz/DSD256.
O Dave fixa-se instantaneamente na frequência de origem do ficheiro sem soluços, apenas com o clic do relógio a indicar o ‘lock’. Mas atenção: os melhores resultados obtêm-se seleccionando DSD+ para os ficheiros DSD nativos (conversão directa sem decimação) ou PCM+ respectivamente, embora possa ouvi-los indiscriminadamente em ambos os modos.
Só há um caso em que isso não é possível: quando pretende ouvir um ficheiro DSD512. Neste caso, tem mesmo que seleccionar DSD+, porque no modo PCM (com decimação) o máximo é DSD256.
O mesmo se passa quanto à drive Asio. A Chord aconselha Kernel ou Wasapi para um som mais natural, e eu tendo a concordar, mas DSD512 só é possível com Asio. A verdade é que não há ficheiros DSD512 nativos. Os que eu tenho são fruto de upsampling de DSD256 ou PCM. Mas quando os houver – e se os houver – o Dave está pronto.
Assim como para PCM768. Basta configurar o J.River e pode ouvir – já hoje! – a Tidal nesta resolução, enquanto espera pelo prometido streaming em MQA, formato com o qual, aliás, o Dave não é compatível – nem ele, nem o Rob Watts, diga-se.
Ele que também prefere PCM a DSD e explica porquê em poucas palavras, porque a explicação científica é bem mais complexa: ‘DSD tem melhor ritmo e consistência temporal mas gera demasiado ruído acima da banda áudio; PCM com um filtro WTA não tem problemas temporais, nem gera ruído, logo…’
O Dave foi testado como DAC puro, DAC/prévio, atacando directamente um par de colunas activas, e como amplificador de auscultadores. Nesta última nobre função, atacou os Sonus Faber Pryma (dinâmicos fechados) e os Hifiman HE1000 (planares abertos). Fiz comparações com o McIntosh MHA100 e o iFI iCAN Pro (teste a publicar em breve na revista inglesa HiFiCritic) e concluí que o primeiro lhe ganha na transparência. É igualmente neutro, e perde no ritmo e ataque propulsionado pelo grave do Dave.
Embora o MHA-100 e o iCAN Pro ofereçam regulação fina de graves, o do Dave parece ter mais energia intrínseca; enquanto o segundo é o mais ‘musical’ de todos, sobretudo com válvulas, mas é também o mais ‘colorido’ devido à eufonia das válvulas (pode sempre optar por transístores: ganha-se algo, perde-se algo). De referir que o iCAN é de outro campeonato (abaixo de 2 mil euros), mas não tem DAC integrado.
Preferi sempre o som com o filtro HF On. Eu sei que ‘soa’ como uma contradição reproduzir ficheiros de super alta resolução e banda muito larga (teoricamente), e depois limitar a reprodução aos 60kHz com filtragem agressiva, mas o filtro limpa o ruído do ‘noise shaping’ que embora se situe muito acima da banda áudio afecta a reprodução audível, e há uma sensação de maior coesão e limpeza geral.
A fase positiva ou negativa já depende muito do disco. Digamos que é 50/50: uns soam melhor assim outros assado. Mas a diferença é bem audível, sobretudo nas vozes.
Quanto aos ‘efeitos especiais’ de crossfeed (para alargar o palco sonoro na audição com auscultadores), dispenso-os bem com música, mas já os tolero – e até os utilizo amiúde – com bandas sonoras de filmes e séries. Se tiver de escolher, opto pelo crossfeed do iCAN, por ser analógico-puro, talvez porque seja o que produz um efeito espacial mais natural e credível.
Todos os DACs Chord concebidos por Robert Watts são invariavelmente ‘melhor-compra’ na sua categoria, sobretudo os ‘portáteis’ Hugo e Mojo. Mas o Dave paira acima de tudo o que Watts produziu até hoje e fica a ‘anos-som’ da maior parte dos DACs actualmente disponíveis no mercado.
Embora custe 10 mil e quinhentos euros, um investimento substancial e muito volátil, numa área digital em constante progresso (não é modular, nem é possível fazer upgrade via soft e firmware), é preciso subir ao Olimpo Digital, onde reinam o dCS Vivaldi e o MSB Select II, ambos 10 x mais caros (!!), para encontrar concorrência ao nível da qualidade de som.
Admito que estou a especular, com base em experiências pessoais, pois não tive oportunidade de os comparar lado-a-lado nas mesmas condições.
Contudo, a sensação de que tudo está correcto, no seu devido lugar, é comum a todos eles, ao ponto de ficar ‘desarmado’ no meu mister de crítico, não conseguindo encontrar nada no som que mereça ‘crítica’.
Que melhor elogio posso eu fazer ao Chord Dave?
O Dave é tão ‘neutro’, uno e coerente na sua reprodução musical que a habitual forma de analisar o som, dividindo-o nas 3 partes do espectro: grave, médio e agudo, já não faz sentido. Mas ‘noblesse oblige’, pois esta ainda é a melhor forma de descrever a experiência auditiva de modo a que os leitores me acompanhem e compreendam.
Não é fácil encontrar um grave tenso, intenso e extenso. Normalmente, a extensão implica alguma perda de tensão, leia-se articulação, definição; e de intensidade, leia-se dinâmica e impacto, logo do ritmo associado a estes dois parâmetros. A reprodução temporal do Dave é perfeita, graças ao filtro WTA, pelo que o grave é apenas a extensão inferior da grande gama média, cuja transparência, claridade e presença está ao nível do actual estado-da-arte, e estende-se sem hiatos até às oitavas superiores, que vão ‘inda além’ do espectro audível, tal a sensação de fluidez e continuidade.
Do mesmo modo, um agudo rico em conteúdo harmónico e informativo é muitas vezes designado como ‘vivo’ ou ‘expressivo’. O agudo do Dave é uma contradição entre termos, pois consegue ser simultaneamente ‘brilhante’ e ‘doce’, como um champanhe de qualidade, por oposição ao som ‘Sprite’ típico da digitalite aguda que grassa por aí incólume.
Em termos acústicos, é a diferença entre o ‘gás’ natural, próprio da música, como o do brilho acetinado do Stradivari de Isabelle Faust, que estou a ouvir num concerto de Bach, enquanto escrevo, e a ‘gasosa’ de um DAC vulgar que transforma um ‘Adagio’ sublime e intemporal numa ‘sangria’ estival – fresca, com um ‘piquinho’ agradável mas colorido.
O Dave eleva-nos até ao espaço divino de Bach, libertando o espírito, sem nunca nos toldar os sentidos. Pode – e deve - ‘beber-se’ sem moderação – terei ouvido mais de 200 faixas de diferentes géneros musicais durante o teste.
Experimentem ouvir Vanessa Fernandez em ‘Use Me’, do álbum do mesmo nome, e ‘Here but I’m gone’, ou Randy Crawford a cantar ‘Rio de Janeiro Blue’ ou ‘Everybody’s talking’, acompanhada por Joe Sample para perceber o que Rob Watts queria dizer quando declarou: ‘o filtro WTA resolve todos os problemas temporais e de ritmo’.
Ou ainda Bettye Lavette em ‘All My Love’ para perceber a diferença entre cantar e interpretar. E não me refiro só à voz de Bettye, oiça o trabalho do baterista, dos guitarristas, do pianista…E siga para bingo com ‘The Word’.
Independentemente do disco, o patamar de silêncio é tão baixo que todos os sons parecem partir de um vácuo negro, sobressaindo com extrema nitidez. Por outro lado, a sensação de espaço, sobretudo de profundidade é notável e ao nível do actual estado-da-arte.
Mas é na textura que o Dave se revela superlativo: os sons têm corpo, forma, movimento, ritmo.
Digital doesn’t get any better than this.
O Chord Dave é o melhor DAC do mundo?
Não sei, teria de os ouvir a todos, e a concorrência lá em cima no Olimpo dos endinheirados onde reina a dCS e a MSB é, como já vimos, muito forte. Mas o Dave é – sem dúvida – o melhor Chord de sempre. E passa a ser também a minha actual referência em conversão D/A. Vou sentir falta dele cá em casa.
Aliás, já sinto, porque acabei agora de o empacotar, e o som perdeu logo aquele ‘je ne sai quoi’ que é a marca inigualável de Robert Watts, aquela sensação de que as vozes e sons pertencem a seres humanos com alma e instrumentos com corpo, e não a robôs – tão perfeitos por vezes que parecem mesmo pessoas. Ora, vai uma longa distância entre ser e parecer.
Lá vou ter de instalar de novo o Hugo para não ter tantas saudades do Dave. Não é a mesma coisa, mas a realidade impõe-se sempre ao sonho.
Produto: Chord Dave
Preço: +/- 10 500 euros (sem suporte)
Distribuidor: TopAudio/Absolute S/V