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2003

O Fiscal Dos Decibéis



Não fumo, não bebo, conduzo devagar e já não tenho idade para beijar miúdas em público. Mas gosto de ouvir música alto. Quando o Super Audio CD e o DVD-Audio colocam à nossa disposição uma dinâmica até aqui impensável superior a 120dB, eis que a aplicação à letra da legislação comunitária sobre os níveis de ruído nos locais de trabalho atinge as raias do ridículo, ao obrigar até os músicos das grandes orquestras sinfónicas a cumprir, também nos ensaios, um limite máximo de 83dB! Tudo porque o legislador não abriu excepções: as salas onde as orquestras ensaiam são consideradas locais de trabalho, tal como as fábricas.
A notícia, difundida na página electrónica da BBC e citada por Barry Willis na página da Stereophile, diz que a Associação de Orquestras Britânicas está em pé de guerra e pretende reclamar junto da UE uma norma de excepção. «Na maior parte das obras sinfónicas os «tutti» orquestrais ultrapassam facilmente os 100dB. E agora?», perguntou Libby MacNamara, director da AOB. Os músicos que se sentam em frente à secção de metais foram ainda aconselhados a utilizar tampões. Como os roqueiros, que dão cabo dos ouvidos aos miúdos nos concertos aos vivos, mas têm os deles bem protegidos. «Mas, se taparmos os ouvidos, como vamos acompanhar os colegas?», insurge-se Libby.


Ainda havemos de ir a um concerto no Royal Albert Hall e ver o «fiscal dos decibéis» de sonómetro na mão a mostrar o cartão amarelo ao maestro sempre que ele exceder o limite de 83dB: piano, Maestro, piano!
Lembram-se do fiscal dos isqueiros no tempo de Salazar? O ridículo também mata.


Daqui envio à Associação de Orquestras Britânica um convite: venham para Portugal ensaiar. Façam como a West/McLaren que anda há um mês a azucrinar-me os ouvidos e a paciência, acelerando no autódromo do Estoril, que custou cinco milhões (de contos!) ao erário público e não serve para provas de Fórmula 1, só serve para treinos, violando todos os limites previstos na recente Lei do Ruído, e não deixando ninguém dormir ou concentrar-se, numa zona onde 50% da população activa trabalha na indústria hoteleira e, portanto, dorme de dia. Enquanto, fora do autódromo, a polícia multa os putos que andam com o escape aberto.


Não há para onde fugir ao roncar dos bólides de Fórmula 1, que aceleram durante longas horas, intermináveis dias, desesperantes semanas, ressoando por montes e vales, numa área protegida, e não apenas no período limitado de uma prova cuja realização, essa sim, seria uma mais valia turística para a região? Quando o vento está de Nordeste, os bólides perseguem os habitantes das redondezas pelas divisões da casa como espectros assassinos.


Para fugir ao massacre, refugio-me na minha sala de audição, com meia-dúzia de SACDs seleccionados, um leitor-SACD da Sony, um amplificador Karan KA180i (não, não desertei da Krell, trata-se de um trabalho de consultor), ligado a um par de Martin-Logan Odyssey por cabos Nordost Valhalla, e deixo-me inundar por este «não querer mais que bem querer» que é ouvir música - e não ruído - sem me preocupar com o fiscal dos decibéis. Admito que não cumpro a lei, porque só a partir dos 83dB deixo de ouvir os malditos carros na recta da meta. Não, também não uso tampões...


Vem isto a propósito do Sony SCD-XA777ES, um verdadeiro Fórmula 1 do som. Quando pensava que a Sony já pouco podia acrescentar à performance do SCD-1, eis que no pacote de mais um leitor-SACD multicanal nos é oferecido um extraordinário leitor-CD. E vou dizer uma heresia: ao contrário de outros modelos de leitor-SACD, que têm como extra um leitor-CD (e DVD), este é um leitor-CD topo de gama que também «lê» SACD multicanal. Não, eu não estou a virar o bico ao prego, SACD é melhor que CD: mais «ar», mais informação, mais transparência, numa palavra, mais «música». E ouvir música em seis canais pode ser uma experiência reveladora capaz de transformar a sua vida audiófila para todo o sempre. Mas o XA777ES tem uma particularidade técnica única no mundo que o torna um leitor-CD do outro mundo. Eu não sabia disso, porque o aparelho é um «sample» que chegou aqui sem qualquer material de apoio (nem sequer trazia o controlo remoto). Mas quando ouvi certas vozes envelhecidas em CDs esquecidos na poeira digital, como o Represas e o Rui Veloso dos velhos tempos, pensei: caramba!, parece um LP, nunca os ouvi tão cheios, tão «redondos», tão dinâmicos, tão emotivos, tão presentes, apesar do excipiente acústico, leia-se, o acompanhamento musical, se tornar, por vezes, demasiado explícito (Deus perdoa as asneiras dos engenheiros de som, o XA777ES não).


As mulheres, então, de Rondstadt a Diana Krall, de Holly Cole a Tracy Chapman, deixaram-me derretido. Deixa-me lá ouvir isto no Krell KPS25c, decidi. Óptimo, sem dúvida, talvez o grave até tenha mais «punch», mas as vozes perdem alguma coerência estrutural. Será possível? Fui investigar. O novo fonocaptador óptico duplo revelou-se como o melhor alguma vez fabricado pela Sony, ultrapassando todos os obstáculos do disco teste da Pièrre Verany até quase aos 2mm (drop-out sucessivo!) com um sorriso de facilidade. É bom sinal em toda a acepção da palavra. Mas isso não explica tudo. Vejamos: o XA777 é um «multicanal» e utiliza seis DACs (conversor) duplos independentes: um para cada canal. Mas quando é utilizado em estéreo puro, todos os seis DACs são adstritos à conversão de apenas dois canais, garantindo assim precisão e dinâmica extra. A estrutura harmónica ganha com isso. Audivelmente. Consta ainda (consta, disse eu) que o sinal PCM dos CD é convertido internamente para DSD antes de passar a analógico. Talvez seja verdade: a dCS, que tem vindo a trabalhar com a Sony, faz o mesmo no superduo: Verdi/Elgar.


Por outras palavras: isto de andar num carro de dois lugares com seis rodas motoras torna rectas as curvas da estrada. Mas atenção: leia bem o manual. O menu é complexo. Na dúvida, opte sempre por «Direct» tanto em estéreo como em multicanal. E, no primeiro caso, utilize exclusivamente a saída 2-Ch analógica. Ah, e não vá na treta dos filtros para «adoçar» os CD: o filtro «standard» é que é bom...


Não, o XA777ES não reproduz DVD. Também não se pode ir de F1 para o trabalho, pois não? Graças a Deus!...


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