Comecemos pela face visível - a capa, de que Nuno Galopim não gostou (DN Mais). O Nuno não parece interessar-se por dinossauros como o seu ilustre pai. Talvez por não ter ouvido o que eu ouvi; não ter sentido a emoção que eu senti (em 1973 vivia num teatro de guerra e veio tudo à superfície). Pensando bem, talvez eu próprio seja já um dinossauro em vias de extinção, um rex audiophilus...
Reza a lenda que o fundo da capa original era para ser azul com esta. O negro foi uma opção de recurso da Hipgnosis (o azul tornava difícil a leitura da contracapa), equipa de que Storm Thorgerson, o responsável pelo design da nova capa, fazia, aliás, parte. Fascina-me o facto de, já no original, o feixe de luz branca (o som da matriz original?) se dividir em seis cores do arco-íris (5+1 multicanal?). Uma antevisão do futuro?
A melhor opção para a capa do SACD teria sido a imagem computorizada do prisma tridimensional publicada na edição do 20º Aniversário, a única que sugere uma banda sonora multicanal.
«Dark Side of The Moon» tinha na sua génese todos os condimentos para ser um disco de demonstração «surround» e pode ser hoje o impulso definitivo de que o Super Audio CD precisava para levantar voo. Rumo à Lua?
Et pour cause, Alan Parsons criou, logo em 1973, uma versão quadrifónica, editada depois em vinilo SQ Quad. Eduardo Rodrigues, da Pedro's Hifi, era na altura a única pessoa que possuía em Portugal equipamento com capacidade de reproduzir esses discos. Cheguei a ouvir alguns LP quadrifónicos, mas Dark Side of The Moon não fazia parte da sua colecção - ou eu lembrar-me-ia...
A matriz quadrifónica de Alan Parsons não foi para seu grande desgosto a base da actual versão multicanal em SACD. E Parsons nunca perdoou o facto de ter sido preterido em favor de James Guthrie. Quando há uns anos visitei os estúdios da EMI, na Abbey Road, a convite da Bowers and Wilkins, cujas colunas 801 Nautilus equipam o estúdio de mistura multicanal, um dos responsáveis comentou o facto de Parsons estar ali a preparar algo de grandioso, referindo-se implicitamente à obra emblemática dos Pink Floyd. Foi apenas em Janeiro, em Las Vegas, durante a CES2003, que foi confirmado à imprensa que o formato SACD e James Guthrie tinham sido os escolhidos, facto de que dei notícia aos leitores de DNA. Aliás, Guthrie já tinha sido o responsável pela mistura em Dolby Digital 5.1 do DVD do filme «The Wall», de Alan Parker.
O Super Audio CD soa melhor numa configuração ideal de cinco colunas de banda larga iguais colocadas de forma que o ouvinte esteja sentado no centro de uma circunferência equidistante de todas elas. A maior parte dos sistemas AV estão concebidos para reproduzir o som dos filmes em DVD e utilizam um par frontal principal, um «brinquedo» como canal central e uns monitores anémicos para os efeitos «surround», enquanto o «subwoofer» carrega sozinho o piano. Ora música não é cinema, é uma coisa séria.
Na impossibilidade física de contar com cinco colunas Martin-Logan Odyssey, utilizei-as apenas como par principal alimentadas por um amplificador Krell FPB400cx por meio de cabos Nordost Valhala. Ao centro e atrás, mantive a opção electrostátrica: respectivamente, uma ML Cinema e um par de ML Clarity (ver DNA/Sons anterior), com amplificação a cargo de um conjunto Krell Showcase, cabladas com os novíssimos Siltech Classic. Como fonte, o excelente Sony XA-777es, cuja boa gestão de canais me permitiu mandar o «subwoofer» de folga.
Guthrie estudou a lição e é óbvio que conhece bem as potencialidades únicas do SACD, pois distribuiu o som pelos diferentes canais de forma equitativa, grave incluído. Masterizada em «5.1» canais de banda larga e na alta resolução proporcionada pela tecnologia Direct Stream Digital, esta é essencialmente uma versão quadrifónica. No DVD do filme «The Wall», Guthrie usou e abusou do canal central e foi muito discreto na utilização dos canais traseiros. E compreende-se a opção: o canal central é a âncora que «agarra» o som ao ecrã. Aqui não há imagem. E, salvo momentos especiais e algumas opções surpreendentes, como a focagem no canal central da guitarra baixo na abertura de «Money», o «centro» está activo mas mantém um judicioso «low profile». Os canais traseiros são aqui o alter ego dos canais frontais. Com a deliciosa excepção de alguns sons avulsos, coros (os «backing vocals» são aqui tomados à letra) e a inevitável tentação do ping-pong cruzado de alguns diálogos, apartes e percussão, e do efeito «surround» descarado («On the Run»), que contribui para a uma maior espectacularidade do projecto e ajuda nas vendas, o que se ouve é um facsimile acústico do par frontal com o equilíbrio a favorecer este último à razão de 2 para 1.
Deste modo, Guthrie criou um casulo acústico, que envolve o ouvinte e o faz flutuar sobre as ondas sonoras sublinhadas por um grave expansivo e aconchegante como um útero materno embalado pelo ritmo do coração. Quem optar por incluir o «subwoofer» perde tanto mais este efeito quanto mais tiver que subir a frequência de corte para compensar a falta de graves, isto no caso, hélas, de ter de utilizar colunas pequenas. E é pena: não há omnidireccionalidade no grave abaixo dos 100Hz.
A versão multicanal situa a acção de «Dark Side of The Moon» numa atmosfera acústica de gravidade-zero (não confundir com grave-zero), onde o ouvinte se sente como um astronauta, brincando em câmara lenta com objectos diversos flutuando no espaço à sua volta, que ora se destacam sob a luz discreta do holofote do canal central (os solos de saxofone de Dick Parry em «Us and Them» e «Money» e a voz de Clare Torry em «The Great Gig in the Sky»), ora impressionam pela nitidez percutiva dos transitórios (moedas, relógios, etc.) ou pela fugacidade ectoplásmica das vozes, risos, instrumentos em «off» e outros efeitos especiais hipnóticos reproduzidos pelos canais traseiros.
Apesar dos 30 anos, as matrizes analógicas originais parecem continuar em bom estado (ligeira saturação em momentos mais complexos) e a transcrição para DSD (embora eu desconfie que a mistura foi feita em PCM) manteve a transparência, claridade (finalmente percebe-se tudo os que eles dizem, mesmo em «off», e os relógios e despertadores da abertura de «Time» nunca soaram tão espectaculares: ouve-se até o movimento das rodas dentadas!) e, sobretudo, a dinâmica: o crescendo inicial da faixa de abertura «Speak to Me» é avassalador.
Recomendado tanto para saudosistas como para «surroundistas». Para os «estereófilos» seria interessante uma comparação com a anterior referência, a histórica versão em LP da Mobile Fidelity.
Fico à espera da edição comemorativa do 40º Aniversário em formato Blu-ray...