Já contei esta história várias vezes. O meu primeiro teste publicado na imprensa nacional incidiu sobre um amplificador NAD. Dei-lhe o título de “Som daNADo”. De facto, o lendário NAD 3020, que parecia um rádio militar, deu voz ao povo há 40 anos, como Abril, ao democratizar o hifi por um preço social. Era de 30W mas parecia que tinha 100W, e dava vontade de puxar por ele, porque a distorção era baixa – daí a protecção contra sobrecarga.
O NAD D3020 é a versão digital do século XXI. O conceito é o mesmo que esteve na génese do 3020 original: responder às actuais necessidades básicas do povo audiófilo por uma quinhentola. Só que, entretanto, muita coisa mudou: a música agora é outra.
A música desmaterializou-se e anda aí pela net como alma penada, sem suporte físico. É lá que jovens e menos jovens a vão buscar, ou “sacar”. E, do mesmo modo que já não se dá tanto valor ao disco, enquanto objecto de culto e colecção, a “materialidade” do equipamento já não tem a importância de outrora, deixou de ser o centro das atenções – é a função que conta.
O 3020 perdeu o ar belicista e a camuflagem verde-cinza militar. É agora um brinquedo de plástico preto do tamanho de um livro, que pode igualmente ser arrumado numa estante. Embora convenha colocá-lo de pé e não deitado de molde a não tapar os respiradores laterais (aquece ligeiramente). Até porque o mostrador que corre sobre a fachada frontal só tem leitura vertical. E não, não gira como o ecrã do iPad se o colocar de lado. Mas o do modelo D 7050 gira...
O D 3020 é um drone que ataca o silêncio pela calada e enche a sala de música, e depois desaparece sem deixar rasto (desliga-se sozinho ao fim de alguns minutos sem funcionar). Neste contexto, é um amplificador stealth, que se furta facilmente aos apertados radares WAF (wife acceptance factor).
Basta ligá-lo com o controlo remoto e pegar no iPad ou no iPhone (Androids também servem) e “injectar” via Bluetooth a sua Playlist favorita, ou fazer uma ligação ao iTunes ou Spotify, que ainda por cima é de borla!, para ter à mão toda a música do mundo. Instantaneamente! Sem configurações complicadas...
É esta universalidade imediata na palma da mão, ao alcance do polegar ou do dedo indicador; esta capacidade para nos levar pelos quatro cantos do mundo musical, sem pagar bilhete e sem sair do sofá, como se viajássemos pelo espaço infinito na nave Enterprise, que torna o D 3020 um ícone da era informática, tal como o 3020 original foi no seu tempo um ícone de sobriedade funcional e modernidade.
Há muito tempo que a família Henriques não se divertia tanto com o meu trabalho de crítico de hifi. A minha esposa já está habituada a esperar dias até que eu coloque, ligue, aqueça e afine os equipamentos highend para depois pedir a sua imprescindível opinião.
Os filhos sabem que aqueles objectos de desejo, que descarregam regularmente no cais do Hificlube, em pesados contentores, estão muito para lá da sua capacidade de gestão doméstica em termos de espaço e – sobretudo – de investimento.
Os netos sabem que é proibido mexer nos “brinquedos” do avô; não vão queimar-se nalguma válvula incandescente ao alcance de dedinhos curiosos, ou chocar com um monstro de 100 quilos.
O D 3020 é uma festa para toda a família. É pequeno e leve, tira-se da caixa, liga-se à corrente e às colunas de som, power-on no comando ou no ícone luminoso no topo, espera-se uns segundos, selecciona-se BT (Bluetooth connect no iPad), e já está! Até o Tomás, que tem 18 meses, já sabe como ligá-lo...
Cada um vai depois ao Spotify e escolhe no iPad as músicas que gosta for free, que tanto podem ir da Aldeia Colorida, da XanaTocToc, e a Sexy Lady, do Gangnam Style, versão Pokoyo, aos Búzios da Ana Moura, quando a voz ainda não lhe doía.
E até eu descobri Royal, dos Lorde, e fiquei a saber quem são os Artic Monkeys, entre outros “monkeys” da selva musical urbana, que eu nunca tinha ouvido antes e parece que vêm cá às festas da cerveja a rodos.
Ou seja: uma variedade de géneros e estilos que está a léguas da habitual seca da música audiófila da minha reserva particular, que todos juram respeitosamente que tem um som fabuloso, ao mesmo tempo que se interrogam em silêncio como é possível alguém andar a ouvir a mesma música há séculos, good Lord(e)!
Ainda que agora seja “desmaterializada” e em alta resolução, JVH vira-o-disco-e-toca-a-mesma: Kind Of Blue, de Miles/Coltrane, já vai aí no décimo formato: LP, CD, MD, DCC, SACD, DVD-Audio, Blu-Ray, 96/24, 192/24, DSD64, DSD128...
O D 3020 reconciliou-me com os Blues(tooth), como protocolo de transmissão de música sem fios. Ata-se e põe-se ao fumeiro, sem necessidade de descarregar drives. Basta carregar no botão. Eu sei que esta é a versão aptX, que é o Bluetooth Xpto, ou lá o que é, mas o importante é que para ouvir, informalmente, música informal no dia-a-dia tem qualidade mais que q.b. E o Spotify também nem merecia tanto.
Quando finalmente consegui ficar sozinho com o D 3020, resolvi explorá-lo melhor. E descobri coisas interessantes. Além do já referido BT Stealth, também tem entradas com fios: optical, coaxial, (2 X) analógica (pode ligar à TV Box, por exemplo) e USB, esta com drive para PC importada do site da NAD. What else?
Phono não tem. Who cares? Dizem eles. Mas pode ligar-lhe o leitor-CD e/ou outras fontes digitais ou analógicas. E o PC via USB, claro.
E como agora a minha rede de internet doméstica foi reforçada por um kit Devolo 500, cortesia de António Eduardo Marques, o meu portátil está em contacto espiritual permanente com o meu NAS de 4 terabytes da Synology, e tenho um mundo de ficheiros áudio de alta resolução na palma da mão, em qualquer ponto da casa.
A resolução USB máxima do D 3020 é de 96/24. Pronto, não tem DSD e só chega aos 192 kHz na entrada coaxial, admito. Mas tem uma particularidade: não se recusa a tocar nenhum ficheiro da minha colecção via USB, seja qual for a resolução.
DSD 64? Toca. DSD 128? Idem! PCM 384kHz? Ibidem! Descobri ainda que também é possível reproduzir os miseráveis 192Kb/s da Spotify (a Premium é a 380Kb/s) via USB com upsampling para 96/24. A fé faz milagres!
Via USB o D 3020 faz downsampling interno de tudo o que está acima de 96kHz, mas with a little help from J.River media driver, que custa 50 dólares, toca melhor que muitas fontes highend. Sem os soluços e estalos habituais nas passagens PCM/DSD. O mesmo não podem dizer muitos DACs que custam o triplo e nem sequer têm amplificação.
Por 499 euros, que mais pode um chefe de família querer? Liguei-o às minhas fiéis colunas Sonus Faber Concertino com 20 anos, e não foi preciso mais nada para ouvir música ambiente de qualidade. E como desk top help DAC (com amp independente) funcionou muito bem com os meus auscultadores Focal Spirit One.
Nota: a Focal é actualmente uma distribuição Esoterico.
Bom, o controlo de volume é digital e o botão roda, roda e aquilo parece que nunca mais sobe. Com o controlo remoto é mais rápido. E o botão luminoso de power-on é caprichoso: ou é teimoso ou demasiado solícito. Uma vez mais: utilize o controlo remoto, e pronto. Esqueça.
Mas não se esqueça de colar os pezinhos de borracha, porque com uma base de apoio tão estreita, o centro de gravidade torna-o um bocado dançarino. E já vimos que se for colocado de lado fica a respirar só por uma guelra, e é preciso inclinar a cabeça para ler o mostrador. Se tiver mesmo de ser, coloque os pezinhos no lado que faz de base, sempre permite algum fluxo de ar para a grelha virada para baixo.
E só tem 30W? Sim, mas são robustos (e encorpados) e chegam para as actividades lúdicas domésticas das famílias modernas que vivem em apartamentos pequenos. Ou pode ligar-lhe os auscultadores e já não chateia os vizinhos. Tem até um botão secreto de “Bass” atrás para anabolizar os earphones de brinquedo. Não chega? Há uma versão D 7050 de 50W/c.
A NAD sabe que 90% da música que tipicamente vai passar por um D 3020 é de baixa resolução, logo com tendência para soar fina e àspera. E por isso equipou-o com um som cheio e doce para compensar. Que não chateia nem irrita nunca. E pode mesmo agradar – e muito – à medida que a resolução sobe na Bolsa da música.
Quando vi pela primeira vez a nova D Series, no Highend 2013, em Munique, eu sabia que a NAD estava a reescrever – agora com bits - a história da democracia áudio depois da revolução popular dos anos 80 liderada pelo NAD 3020 original.
Mas só a convivência diária com o D 3020 me deu a noção da sua verdadeira importância no actual contexto económico, enquanto resposta adequada à crise que muitas famílias atravessam e as impede hoje de ter acesso a meios mais sofisticados de reprodução musical.
Até o facto de gastar apenas 0,5V em standby ajuda a depauperada economia doméstica. Com o preço da electricidade a subir todos os dias, ter um amplificador de Classe A permanentemente ligado é como alimentar um burro a pão de ló. Ou como diria o Mexia: e o burro sou eu?!...
O D 3020 não é, pois, apenas mais um tudo-em-um, eu diria antes que pode ser um-para-todos-e-tudo-para-alguns.
Resta dizer que foi adoptado pela família Henriques, que lhe concedeu o visto dourado de residência. E não foi preciso investir 500 mil euros...
Para mais informações: ESOTERICO