Recentemente ouvi no Grande Auditório da Gulbenkian Fabio Biondi e Europa Galante. O programa e a interpretação foram excepcionais. Nesta ocasião, sentei-me numa zona do auditório onde nunca antes tinha ficado: num extremo lateral da primeira plateia. Apesar da qualidade superlativa da música, não a fruí como poderia e gostaria...
O Grande Auditório da Gulbenkian não é, na minha opinião, uma sala quese preste especialmente para a música antiga. Prefiro, para este tipo de música, um espaço acusticamente mais 'vivo', menos amortecido. No passado dia 13 de Março, Fabio Biondi e Europa Galante soaram-me mal. Não por culpa da música e ainda menos por culpa dos intérpretes. Mas por culpa da sala e do local onde me sentei. Tudo aquilo soou seco, abafado, distante, pobre harmonicamente. Isto a ponto de ter interferido, genuinamente, com a fruição da música. Se acaso estivesse a escutar um sistema, teria abanado a cabeça em sinal de desagrado... Mas não estava: eles tocavam a 20-30 metros de mim e numa sala onde já estive em dezenas de ocasiões - algumas delas verdadeiramente exaltantes.
O que é que isto tem a ver com áudio? Na minha opinião, muito.
Existe mesmo um som absoluto? 'claro!' - (ex)clamam alguns - 'é fácil: vão ouvir música ao vivo ... é dela que um sistema se deve aproximar. Ah! ... e música não amplificada!'.
Realismo. O que ouvi era 'real'. Eu estava lá. Os músicos estavam lá. O 'realismo' é outra coisa, e dele só se fala quando nos referimos à reprodução de música gravada. Até ao aparecimento de meios técnicos que permitem fixar a imagem e gravar sons, o questionamento da validade da percepção sensorial como instrumento de escrutínio da «realidade» era uma questão remetida exclusivamente para o domínio filosófico. Desde Platão à actualidade, passando por Descartes, esta é uma questão transversal ao pensamento filosófico. Mas não escrevo para me deter nas questões estritamente Filosóficas. Na verdade, desde que criámos meios tecnológicos que permitem captar a 'realidade' e reproduzi-la, que a questão do realismo adquiriu um carácter mais 'terra-a-terra': quão fiel é essa amostra à forma como nós percepcionamos a realidade?
Em primeiro lugar o registo que efectuamos é um acto volitivo: captamos o que achamos que vale a pena ser captado, nas condições em que escolhemos. Um exemplo visual: suponhamos que quero transmitir a alguém, que não conhece a minha cidade de adopção, uma imagem de Lisboa. Provavelmente iria até à Sr.ª do Monte (na zona da Graça) e utilizaria uma câmara panorâmica para tentar captar a que eu acho ser a melhor vista sobre a cidade. Escolheria as condições de luz que mais me agradassem e procuraria fixar esse momento em imagem. A escolha do local, do enquadramento, da luz, da película, da óptica seriam «minhas». Claro que poderia ir a esse sítio numa manhã de nevoeiro. Disparava a câmara. A imagem que captava seria «realista». Tão «realista» quanto a anterior. Mas seria essa a imagem que eu gostaria transmitir a alguém que não tivesse outra forma de conhecer Lisboa que não essa? Não. Do mesmo modo não seria o que ouvi no local onde me sentei no passado dia 13 de Março para ouvir o Fabio Biondi e Europa Galante que gostaria de ver registado para a posteridade.
Nos últimos meses tem havido uma discussão acalorada na secção de cartas da Stereophile. John Gordon Holt (JGH) lançou o mote em meados de 2003 com um texto no qual se apresenta como defensor do 'som absoluto' e demarca-se totalmente de qualquer subjectivismo (1). Este é um tema que não é pacífico e as reacções têm sido acaloradas.
Eu defendo que a música ao vivo e música gravada são realidades «distintas». São diferentes quer no conteúdo quer na relação que estabelecemos com uma ou outra.
Comecemos pelo conteúdo:
1) O engenheiro de som no local da captação assume opções. Opções quanto à localização dos microfones, quanto ao(s) tipo(s) de microfone(s) a ser utilizado(s), a sua quantidade. Os microfones possuem 'personalidade'. Apresentam características de direccionalidade distintas entre si (e distintas do ouvido humano, acrescento) e uma resposta que não é plana, nem 'full-range';
A proximidade dos microfones permite captar detalhes que eu - em muitos anos de música ao vivo - nunca ouvi numa sala de concertos. Nisto (e também nas dimensões físicas dos instrumentos e intérpretes) estamos, muitas vezes, perante um cenário hiper-realista.
Entra a captação ... e aqui encontramos desde as técnicas minimalistas (Blumlein, por exemplo) a abordagens profundamente 'maximalistas' que passam pela utilização de dezenas de microfones colocados quer junto dos instrumentos, quer em diversas localizações da sala em 'far field' (Como exemplo, o sistema '4D' da Deutsch Grammophone consiste em utilizar numerosos microfones colocados a diferentes distâncias, aproveitanto os desfasamentos temporais na captação de som pelos microfones para recriar um certa 'ambiência'). Ou seja, os engenheiros de som efectuam uma composição que reflecte a sua escola, o seu gosto, uma concepção estética. Em todo o caso, estamos perante uma opção;
2) Obtida a matéria-prima no local da gravação, passa-se à edição desse conteúdo. Processa-se a mistura de um conteúdo “multi-track” e a sua transição para um número de canais que é, quase sempre, diferente do original. O engenheiro é aqui o arquitecto de um edifício sonoro. Ditado pela sua sensibilidade, opções do produtor, executivos da editora, é cozinhado um resultado final. Mais uma vez, prevalecem opções pessoais. Isto numa interpretação benevolente - O advento do multi-mike e multi-track (por motivos essencialmente económicos ... menos gente qualificada no site da gravação, menos tempo de alocação dos músicos ... depois 'compõe-se o ramalhete' na mesa de mistura) roubou às gravações o imediatismo, coerência e “presença” que encontramos nas gravações da segunda metade dos anos 50 e na década de 60 (mas essa é outra 'estória');
3) O disco. O disco é o resultado final. Aquele a que o consumidor acede. Este é resultado de um processo industrial, imperfeito (como tudo na vida) e com resultados não exactamente uniformes (nem todos os discos de uma mesma edição soam iguais (2).
Notas:
1 -Tradução livre de absolute sound. O ponto de vista defendido por JGH é o de que o que caracteriza o som ideal é uma questão objectiva.
2- Isso inclui suportes digitais. Não nos esqueçamos que a produção de um CD é um processo tão analógico como o de um LP. Assim como é a sua leitura (!)
O Grande Auditório da Gulbenkian não é, na minha opinião, uma sala quese preste especialmente para a música antiga. Prefiro, para este tipo de música, um espaço acusticamente mais 'vivo', menos amortecido. No passado dia 13 de Março, Fabio Biondi e Europa Galante soaram-me mal. Não por culpa da música e ainda menos por culpa dos intérpretes. Mas por culpa da sala e do local onde me sentei. Tudo aquilo soou seco, abafado, distante, pobre harmonicamente. Isto a ponto de ter interferido, genuinamente, com a fruição da música. Se acaso estivesse a escutar um sistema, teria abanado a cabeça em sinal de desagrado... Mas não estava: eles tocavam a 20-30 metros de mim e numa sala onde já estive em dezenas de ocasiões - algumas delas verdadeiramente exaltantes.
O que é que isto tem a ver com áudio? Na minha opinião, muito.
Existe mesmo um som absoluto? 'claro!' - (ex)clamam alguns - 'é fácil: vão ouvir música ao vivo ... é dela que um sistema se deve aproximar. Ah! ... e música não amplificada!'.
Realismo. O que ouvi era 'real'. Eu estava lá. Os músicos estavam lá. O 'realismo' é outra coisa, e dele só se fala quando nos referimos à reprodução de música gravada. Até ao aparecimento de meios técnicos que permitem fixar a imagem e gravar sons, o questionamento da validade da percepção sensorial como instrumento de escrutínio da «realidade» era uma questão remetida exclusivamente para o domínio filosófico. Desde Platão à actualidade, passando por Descartes, esta é uma questão transversal ao pensamento filosófico. Mas não escrevo para me deter nas questões estritamente Filosóficas. Na verdade, desde que criámos meios tecnológicos que permitem captar a 'realidade' e reproduzi-la, que a questão do realismo adquiriu um carácter mais 'terra-a-terra': quão fiel é essa amostra à forma como nós percepcionamos a realidade?
Em primeiro lugar o registo que efectuamos é um acto volitivo: captamos o que achamos que vale a pena ser captado, nas condições em que escolhemos. Um exemplo visual: suponhamos que quero transmitir a alguém, que não conhece a minha cidade de adopção, uma imagem de Lisboa. Provavelmente iria até à Sr.ª do Monte (na zona da Graça) e utilizaria uma câmara panorâmica para tentar captar a que eu acho ser a melhor vista sobre a cidade. Escolheria as condições de luz que mais me agradassem e procuraria fixar esse momento em imagem. A escolha do local, do enquadramento, da luz, da película, da óptica seriam «minhas». Claro que poderia ir a esse sítio numa manhã de nevoeiro. Disparava a câmara. A imagem que captava seria «realista». Tão «realista» quanto a anterior. Mas seria essa a imagem que eu gostaria transmitir a alguém que não tivesse outra forma de conhecer Lisboa que não essa? Não. Do mesmo modo não seria o que ouvi no local onde me sentei no passado dia 13 de Março para ouvir o Fabio Biondi e Europa Galante que gostaria de ver registado para a posteridade.
Nos últimos meses tem havido uma discussão acalorada na secção de cartas da Stereophile. John Gordon Holt (JGH) lançou o mote em meados de 2003 com um texto no qual se apresenta como defensor do 'som absoluto' e demarca-se totalmente de qualquer subjectivismo (1). Este é um tema que não é pacífico e as reacções têm sido acaloradas.
Eu defendo que a música ao vivo e música gravada são realidades «distintas». São diferentes quer no conteúdo quer na relação que estabelecemos com uma ou outra.
Comecemos pelo conteúdo:
1) O engenheiro de som no local da captação assume opções. Opções quanto à localização dos microfones, quanto ao(s) tipo(s) de microfone(s) a ser utilizado(s), a sua quantidade. Os microfones possuem 'personalidade'. Apresentam características de direccionalidade distintas entre si (e distintas do ouvido humano, acrescento) e uma resposta que não é plana, nem 'full-range';
A proximidade dos microfones permite captar detalhes que eu - em muitos anos de música ao vivo - nunca ouvi numa sala de concertos. Nisto (e também nas dimensões físicas dos instrumentos e intérpretes) estamos, muitas vezes, perante um cenário hiper-realista.
Entra a captação ... e aqui encontramos desde as técnicas minimalistas (Blumlein, por exemplo) a abordagens profundamente 'maximalistas' que passam pela utilização de dezenas de microfones colocados quer junto dos instrumentos, quer em diversas localizações da sala em 'far field' (Como exemplo, o sistema '4D' da Deutsch Grammophone consiste em utilizar numerosos microfones colocados a diferentes distâncias, aproveitanto os desfasamentos temporais na captação de som pelos microfones para recriar um certa 'ambiência'). Ou seja, os engenheiros de som efectuam uma composição que reflecte a sua escola, o seu gosto, uma concepção estética. Em todo o caso, estamos perante uma opção;
2) Obtida a matéria-prima no local da gravação, passa-se à edição desse conteúdo. Processa-se a mistura de um conteúdo “multi-track” e a sua transição para um número de canais que é, quase sempre, diferente do original. O engenheiro é aqui o arquitecto de um edifício sonoro. Ditado pela sua sensibilidade, opções do produtor, executivos da editora, é cozinhado um resultado final. Mais uma vez, prevalecem opções pessoais. Isto numa interpretação benevolente - O advento do multi-mike e multi-track (por motivos essencialmente económicos ... menos gente qualificada no site da gravação, menos tempo de alocação dos músicos ... depois 'compõe-se o ramalhete' na mesa de mistura) roubou às gravações o imediatismo, coerência e “presença” que encontramos nas gravações da segunda metade dos anos 50 e na década de 60 (mas essa é outra 'estória');
3) O disco. O disco é o resultado final. Aquele a que o consumidor acede. Este é resultado de um processo industrial, imperfeito (como tudo na vida) e com resultados não exactamente uniformes (nem todos os discos de uma mesma edição soam iguais (2).
Notas:
1 -Tradução livre de absolute sound. O ponto de vista defendido por JGH é o de que o que caracteriza o som ideal é uma questão objectiva.
2- Isso inclui suportes digitais. Não nos esqueçamos que a produção de um CD é um processo tão analógico como o de um LP. Assim como é a sua leitura (!)